quarta-feira, 28 de março de 2012

ANTIGA, 9ª sessão (Tomaz Fidalgo)


Adfectus
(dá a nossa afeição, afectação)

adfectio, onis
adfector, oris, adficci

(como se viu na última sessão, está relacionado com os πάθη e com a propensão natural para perseguir determinado sentido, e também para exprimir uma disposição adquirida. Ex. tensão entre possibilidade de compreender qualquer coisa e compreender actualmente qualquer coisa.)

Vida como situação aberta -- é neste horizonte que se percebe as adfectionis.
(A própria perspectiva teórica não se constitui se afecções. É isto que Nietzsche bem vê no início do JGB, tal como Platão e outros gregos já tinham visto.)

A adfectio não pode ser descrita por componentes de realidade. São formas de acontecimento, se virmos a estrutura gramatical da sua referência. O fenómeno do afecto só se percebe, na datação de uma época, na elencagem do modo como se diz a coisa humana e as relações humanas, a relação dos humanos com Deus, etc.. é pela identificação das situações que se entende o que está a ser visado ( o referente) -- é por aí que se percebe a forma de pensar de uma determinada época: como é que é referida a vida humano, as tomadas de posição do humano relativamente às situações extremas. Em causa não está uma hermenêutica que pretende trazer à colação qual a filosofia que vigorava, ou quais os contemporâneos, etc., mas de que forma essa época visa a circunstância do humano.
As adfectiones são consideradas dentro de um quadro geral que pressupõe uma interrogação que exerce pressão, e a escolha destas vidas como resposta à pergunta pelo modo de viver a vida; pressupõe uma pergunta pelo sentido do ser.
Importa ver quais são as palavras, os termos todos, que importam para aquilo a que Heidegger chama a situação hermenêutica. Mas podemos fazer isto tudo, e ainda assim não compreender esses conceitos como operatórios, mas como descritivos. Qual o estado de coisas em que se constitui a notícia daquilo que estamos a estudar. Qual é a ideia de sentido de realização da vida humana que está a ser pressuposta para haver uma atribuição de valor ou dignidade às acções?
Em Tácito existe claramente uma ideia de bolsa -- nós temos uma cotação junto de outras pessoas. Há pessoas junto das quais queremos marcar pontos, há pessoas com que não nos importamos de ser mal cotados.
Isto está relacionado com a compreensão do humano já numa "família". O Homem está sempre numa tensão de pressão com um outro qualquer. O humano está dado sempre na possibilidade de ser com outros. Compreensão de necessidade vital que é vista pelos romanos (e gregos e nós também) que a nossa identidade é determinada por sermos filhos de X e amigos de Y e pela maneira como vivemos essas relações. Nós não escolhemos ser de tal país, de ter conhecido tais pessoas, de ter tais pais, de tal modo que há determinações formais às quais estão dadas resposta sem nós sabermos. Assim, a determinação fundamental do humano é o ser susceptível.

Entrada L&S:

affectio
affectĭo (adf-), ōnis, f. adficio.
I The relation to or disposition toward a thing produced in a person by some influence (in this and the two foll. signif. almost peculiar to the philos. lang. of Cic.): comparantur ea, quae aut majora aut minora aut paria dicuntur; in quibus spectantur haec: numerus, species, vis, quaedam etiam ad res aliquas adfectio, relation, Cic. Top. 18, 68, and § 70; cf. id. ib. 2, 7.—
Nós somos um fecho de relações, um ponto de cruzamento complexo entre várias disposições, e somos também uma relação com o resultado dessas afecções. O humano e a vida humana não são pontuais, mas pontos que abrem para um horizonte. Aquilo que Wittgenstein identifica como estados de coisas: a malha complexa em que estamos já caídos no "a ser" da vida. É essa malha que depois é filtrada dependendo do sentido da minha relação com as coisas. Ex. Estamos afectados por primeiras impressões. O que nós temos de uma pessoa é a impressão que ela nos deixa. Nós somos afectáveis por impressões não numa relação de causa efeito, mas por estar pressuposto o sermos susceptíveis de ser afectados -- é este pressuposto que opera na compreensão de ser afectado (como se vê na relação do se com o infinitivo na oratio obliqua latina -- está pensado num sentido aoristo -- estarmos a ser, o "viver-se", etc-- estar a viver mas não ser o agente). Há uma estrutura formal da afecção. Eu posso estar a viver no resultado de um impacto emocional que se deu na semana passada, mas corresponde à identificação de que nós aumentamos a importância de algo que não foi nada e subestimamos acontecimentos importantes e neutralizamos esses acontecimentos. O ser afectável é o fundamental da vida -- o que define o estar vivo, o humano vivo, é o ser afectado. No humano está pressuposto o ser afectado -- o estar de tal modo, o estado em que me encontro: estou chateado, fiquei chateado; fiquei contente; fiquei triste, etc. Quando eu identifico uma maneira de ser eu estou a reconhecer um agente que me invade, me ocupa, me controla e com o qual eu tenho uma relação. Pergunta fundamental pela situação hermenêutica em que me encontro.
A change in the state or condition of body or mind, a state or frame of mind, feeling (only transient, while habitus is lasting): adfectio est animi aut corporis ex tempore aliqua de causa commutatio ut, laetitia, cupiditas, metus, molestia, morbus, debilitas, et alia, quae in eodem genere reperiuntur, Cic. Inv. 1, 25, 36; 1, 2, 5; cf. 1, 2, 5, § 19. In Gellius = adfectus, as transl. of the Gr. πάθος, Gell. 19, 12, 3.—


Afectação pensada como patologia: requer diagnóstico, tratamento, erradicação -- a estrutura fundamental da vida é o dado na doença: ela vem e toma conta de nós; depois há que perceber como é que ficámos assim, se queremos ficar assim, como sair daqui, e todo o restante processo terapêutico. A adfectio é pensada por uma comutatio. Compreender na relação dos próprios com os próprios a estrutura da afectação. Em causa nos Anais está a descrição da vida como ser vivo que é afectado e que se manifesta numa comutatio. Está sempre a ser tida em vista a mutabilidade das coisas, a comutabilidade das coisas. O problema é que com a mudança vem um envelope que obriga à compreensão da mudança. A mudança é portadora de um sentido -- o espírito dos tempos (Zeitgeist) é portador de sentido. A vida é lúcida, e isso implica uma relação entre nós e as próprias coisas, bem como uma relação entre nós e aquilo que nos afecta. E na afecção de cada circuntância que nós lemos os fenómenos, é a inteligibilidade da situação que nós percebemos a experiência e é essa possibilidade de inteligibilidade que nos permite perceber o que está a acontecer e permite antecipar o que vai acontecer, e por isso ter um plano de reação. É em relação com uma afectação que se faz um diagnóstico, que o médico vê o que o leigo não vê. Neste sentido a afectação pode corresponder à constituição permanente do nosso ponto de vista. É essa estrutura de afectação que define o estar vivo -- estar vivo é ser susceptível de ser afectado. A minha vida é o que me afecta e em causa está o horizonte da afectabilidade no qual me encontro. Não se quer ver o mínimo denominador comum que permite qual a possibilidade de ser afectado, mas a tentativa de determinação do vital como sendo uma afectação -- algo de que me aproximo. Afectar significa tornar próprio, trazer a mim; mas corresponde também ao fazer caminho, como nós nos fazemos ao caminho por estarmos afectados por um terminus ad quem ou um terminos ad quo. Não é um relação estática entre a causa e o efeito, mas a compreensão de que uma afectação pode ter como problema a desafectação daquilo que me afecta, ou seja, relativamente ao qual temos um programa. É neste sentido que conseguimos perceber se queremos ou não alguma coisa -- não em apetece ir aí, ou não me apetece ir por aí.

   B A permanent state of mind, a frame of mind, a state of feeling, Gr. διάθεσις: virtus est adfectio animi constans conveniensque, Cic. Tusc. 4, 15, 34 Kühn (cf. in Gr. διάθεσις ψυχῆς συμφώνης αὑτῇ, Stob. Ecl. Eth. 2, p. 104); id. Fin. 3, 26, 65 Goer.: non mihi est vita mea utilior quam animi talis adfectio, neminem ut violem commodi mei gratiā, id. Off. 2, 6, 29 Beier.—Also of body, as anal. to the mind, a fixed, permanent constitution: tu qui detinieris summum bonum firma corporis adfectione contineri, etc., Cic. Tusc. 5, 9, 27.—And metaph. of the stars, their position in respect to one another: astrorum, a constellation, Cic. Fat. 4: ex qua adfectione caeli primum spiritum duxerit, id. Div. 2, 47 (cf. affectus, a, um, B.).—

   C Esp., a favorable disposition toward any one, love, affection, good-will (post-Aug. prose): simiarum generi praecipua erga fetum adfectio, Plin. 8, 54, 80: egit Nero grates patribus laetas inter audientium adfectiones, Tac. A. 4, 15: argentum magis quam aurum sequuntur, nullā adfectione animi, sed quia, etc., id. G. 5; Just. 24, 3: Artemisia Mausolum virum amāsse fertur ultra adfectionis humanae fidem, Gell. 10, 18, 1.—Concr., the loved object: adfectiones, children, Cod. Th. 13, 9, 3.—

   D In the Lat. of the Pandects, ability of willing, will, volition, inclination (cf. 2. affectus, II. D.): furiosus et pupillus non possunt incipere possidere, quia adfectionem tenendi non habent, Dig. 5, 16, 60.


Na forma verbal, no L&S:


Charlton T. Lewis; Charles Short [1879], A Latin Dictionary; Founded on Andrews' edition of Freund's Latin dictionary (Trustees of Tufts University, Oxford) [word count] [latindico01].



affecto
affecto (better adf-), āvi, ātum, 1,
I v. freq. [adficio]; constr. aliquid.

I To strive after a thing, to exert one's self to obtain, to pursue, to aim to do: adfectare est pronum animum ad faciendum habere, Paul. ex Fest. p. 2 Müll.—So, adfectare viam or iter, trop., to enter on or take a way, in order to arrive at a destined point (very freq. in Plaut. and Ter.): ut me defraudes, ad eam rem adfectas viam, you are on your way to this, Plaut. Men. 4, 3, 12; id. Aul. 3, 6, 39: hi gladiatorio animo ad me adfectant viam, set upon me, Ter. Phorm. 5, 7, 71; so id. Heaut. 2, 3, 60: quam viam munitet, quod iter adfectet, videtis, Cic. Rosc. Am. 48.—So in other cases: cur opus adfectas novum? Ov. Am. 1, 1, 14: adfectare spem, to cling to or cherish, Liv. 28, 18; cf. Ov. M. 5, 377: navem, to seize or lay hold of: verum ubi nulla datur dextrā adfectare potestas (of the giant Polyphemus), Verg. A. 3, 670.—
Afectar é ter o espírito disponível para o fazer, fazer o caminho,. Tomar um caminho para chegar a um ponto. Ir atrás de, perseguir, apontar a, etc. Há uma semiótica vital na interpretação da vida. Há uma estrutura complexa que permite tornar próprio algo -- nesse sentido nós podemos afectar a própria vida -- é nesse sentido que se vai atrás de X. Descrição da situação concreta em que a pergunta pelas afecções aparece do ponto de vista ontológico e não apenas regional. Não como desvios (amorosos, viciosos, etc), mas compreender que o facto de estarmos em relação connosco permite pensar que a vida humana é qualquer coisa que se está esticar de tal modo que ao irmos por determinado caminho estamos a ganhar não outro, mas o próprio -- Eu posso ganhar a minha vida, eu posso ser eu.
Vem de ὄρεξισ -- Arsitóteles identifica como a estrutura do humano: algo que estica e já nos está a levar por aí além. Traduzido para Latim por desiderum ou desum . Que significa sentir a falta de. O complexo de relações que temos compreendido na estrutura das relações que temos com a falta de X. Corresponde á ideia de saciar, ou de comer até rebentar. isso acontece na relação não só com a comida, mas com a vida --ter falta, ter excesso de.O facto de as coisas estarem asseguradas agora não nos escusa da tensão com o tempo em que ela há de faltar --pelo contrário, o ser saudável pode colocar-me em tensão com a perda dessa saúde (e muitas vezes coloca). A dificuldade é compreender que esta ὄρεξισ não é minha, mas dá-me. Dá-me para ali. Há uma relação nítida da vida com a afectação e até com o instrumento da afectação (o que me afecta).

II To endeavor to make one's own, to pursue, strive after, aspire to, aim at, desire: munditiem, non adfluentiam adfectabat, Nep. Att. 13, 5; Cic. Her. 4, 22: diligentiam, Plin. 17, 1, 1: magnificentiam verborum, Quint. 3, 8, 61: elegantiam Graecae orationis verbis Latinis, Gell. 17, 20: artem, Val. Max. 8, 7, n. 1 extr.Pass.: morbo adfectari, to be seized or attacked by disease, Liv. 29, 10 init.

   B In a bad sense, to strive after a thing passionately, to aim at or aspire to: dominationes, Sall. Fragm. ap. Aug. Civ. Dei, 3, 17: caelum, Ov. Am. 3, 8, 51: uniones, Plin. 9, 35, 56: regnum, Liv. 1, 46, 2; 2, 7, 6: imperium in Latinos, id. 1, 50, 4: cruorem alicujus, Stat. Th. 11, 539: immortalitatem, Curt. 4, 7.—Also with inf. as object, Plaut. Bacch. 3, 1, 9: non ego sidereas adfecto tangere sedes, Ov. A. A. 2, 39; Stat. Th. 1, 132: Sil. 4, 138; Quint. 5, 10, 28: qui esse docti adfectant, id. 10, 1, 97.—

   C In the histt., to seek to draw to one's self, to try to gain over: civitates formidine adfectare, Sall. J. 66: Gallias, Vell. 2, 39: Galliarum societatem, Tac. H. 4, 17; 1, 23; 4, 66; id. G. 37, 9; Flor. 2, 2, 3.—

   D To imitate a thing faultily, or with dissimulation, to affect, feign (only post-Aug.): crebrum anhelitum, Quint. 11, 3, 56: imitationem antiquitatis, id. 11, 3, 10: famam clementiae, Tac. H. 2, 63: studium carminum, id. A. 14, 16; so Suet. Vesp. 23: Plin. Pan. 20.—Hence, adfectātus, a, um, P. a.; in rhetoric, choice, select, or farfetched; studied: subtilitas, Quint. 3, 11, 21: scurrilitas, id. 11, 1, 30: (gradatio) apertiorem habet artem et magis adfectatam, id. 9, 3, 54: adfectata et parum naturalia, id. 11, 3, 10 (but in 12, 10, 45 the correct read. is effectius, acc. to Spald.).—Adv.: adfec-tātō, studiously, zealously, Lampr. Heliog. 17.







2.88 "ceterum Arminius abscedentibus Romanis et pulso Maroboduo regnum adfectans libertatem popularium adversam habuit" Armínio tnunca tinah pretensão de afectar para si o poder, mas teve de o fazer, para dar poder ao povo.

3.15 "redintegratamque accusationem, infensas patrum voces, adversa et saeva cuncta perpessus, nullo magis exterritus est quam quod Tiberium sine miseratione, sine ira, obstinatum clausumque vidit, ne quo adfectu perrumperetur" Descrição do modo de ser de Tibério relativamente a Piso -- não tinha misericórdi mas também não tinha nenhuma ira. Não havia nenhum afecto que  rompia por  Tibério.

3.58 "non odio aut privatis adfectionibus obnoxium."  Não há ódio entre a pessoas nem nenhuma animosidade. Há pessoas com quem não podemos ("não posso com ele"). A presença de alguém não é descrita como uma fotografia, mas sim como podendo gerar alegria entre as pessoas, ou tristeza.

4.15 "egitque Nero grates ea causa patribus atque avo, laetas inter audientium adfectiones qui recenti memoria Germanici illum aspici, illum audiri rebantur"

4.42 "et Votienus quidem maiestatis poenis adfectus est"

6.40 "eo anno neque quod L. Aruseius * * * morte adfecti forent, adsuetudine malorum ut atrox advertebatur"  Afectar de morte = morte. Foram afectados pela morte

11.38 " ne secutis quidem diebus odii gaudii, irae tristitiae, ullius denique humani adfectus signa dedit, non cum laetantis accusatores aspiceret, non cum filios maerentis. iuvitque oblivionem eius senatus censendo nomen et effigies privatis ac publicis locis demovendas "
O verbo utilizado é "introspexit", na expressão " introspexit fortuna sua" -- tem a ver com a ideia de medição das circunstâncias: mediu a sua sorte. Ao perceber a circunstância em que estamos permite ver aquilo em que estamos metidos.
Depois foi anunciado a Cláudio que messalina tinha morrido. ele não perguntou  como foi, pediu mais um copo e voltou ao convívio. Nem sequer nos dias que se seguiam deu sinais de afecto humano, alegria ou ódio, cólera ou tristeza, nem quando estava com os acusadores alegres ou com os filhos entristecidos.  Ideia de que as afdectiones dão presença de si, têm uma manifestação, e por isso têm à partida uma possibilidade de interpretação desses mesmos sinais.


13.16 (mais uma vez o assassínio de Britânico) " ille ut erat reclinis et nescio similis, solitum ita ait per comitialem morbum quo prima ab infantia adflictaretur Britannicus, et redituros paulatim visus sensusque ."
 "Octavia quoque, quamvis rudibus annis, dolorem caritatem, omnis adfectus abscondere didicerat "
Em qualquer circunstância a interpretação da situação impõe a linguagem da conjectura, da hipóteses, da tentativa de interpretação de um desfecho para a situação. É isto que ele acontece no planeamento do assassinato de Britânico -- posto o problema de matar Britânico Nero é posto nesta situação e numa tensão com a resolução do problema de o matar sem matar o provador.
O que é que acontece? Que aqueles que não sabem o que aconteceu (os que não previram o que ia acontecer, que é o significado de imprudentes em latim), mas o de uma leitura mais profunda da circunstância ficam de pé a olhar para Nero a ver se detectam sinais do que aconteceu, ou seja, para ver se ele se descai. Nero diz que ele deve ter sido acometido pela doença que tinha desde a infância (epilepsia). A linguagem é uma linguagem de olhar atento que tenta adivinhar no olhar do outro o que se sucedeu. Depois há pavor em Agrippina. Ela tenta disfarçar, mas salta à vista que ela tem pavor -- os vasos comunicantes, o que permite ver o que se passa na cabeça de outro mostram-se -- pois ela leu dentro (intellegebat) uma situação de parricídio, e percebeu que uma vez aberto o precedente, ela podia morrer a seguir. E Octavia, ainda que fosse muito jovem, tinha aprendido a esconder todos os afectos. E assim, depois de um breve silêncio a alegria voltou a instalar-se.

CONTEMPORÂNEA, 9ª sessão (Tomaz Fidalgo)

9ª aula Filosofia Contemporânea.

Distinção entre Sinn e Bedeutung

Sinn - sentido

Bedeutung - denotação, significado, referente.

Bedeutung aparece a partir de Fregue:

Ex.
Figura com três lado
Figura com três ângulos.

Tem sentidos diferentes mas o mesmo referente [Bedeutung] -- não podem ser substituídos porque não se pode substituir "lado" por "ângulo", mas referem o mesmo X.



Investigações filosóficas:
analisar as perspectivas que foram ignoradas por Frege, que estava limitado pela determinação de verdade por determinação do referente -- os enunciados da Alice no País das Maravilhas pode ter sentido, mas não se pode fazer uma correspondência entre eles e a realidade, e por isso não podem ser verdadeiros.


O que é que constitui uma Bedeutung losigkeit (?)-- uma ausência de referente. Como é que o sentido se relaciona com o referente? e com a ausência de referente? Como esgotar todas as possibilidade de relação entre Sinn e Bedeutung?
É aqui que está dada a chave para a distinção entre Verstehen e nicht Verstehen.  Qual é a natureza da nossa relação com o sentido e a referência? Qual é a nossa relação com a compreensão? Qual é a compreensão da própria compreensão? Qual a nossa adesão à compreensão?
Isto está relacionado com o "ser levado por" (gefürt werden), fenómeno de acompanhamento que permite entender e ser levado com as coisas.
Wittgenstein tem em vista a compreensão da "Ahah experience" -- o que é que faz com que eu passe a entender algo? Uma expressão intrínseca do "estar a ser" na compreensão do que me envolve. O estar a ser levado(gefürt werden) corresponde a essa óptica irremediavelmente resolutiva do nosso acesso ao mundo -- a forma complexa como a nossa compreensão do sentido tem a ver com a sequência, desse ser no tempo, do estar a ser levado no tempo. Em causa está a articulação do modo como somos levados pela leitura de um livro, somos levados ao assistir a um filme, como planeamos uma tarde, etc., ou seja, como compreendemos o fluxo do tempo (ex. início do ano lectivo e o final do mesmo ano).


583. Tu falas como se aquilo que se passa neste instante não tivesse um referente. O que é que quer dizer uma sensação profunda? O que é que quer dizer um referente? Poderia uma pessoa ter uma sensação do amor durante um segundo?
O que acontece neste instante tem um referente. A envolvência dá-lhe importância. E a palavras esperança ganha significado no contexto da vida humana. O sorriso só ganha sentido no rosto.


“Tem algum sentido perguntar de onde é que tu sabes que é isso em que crês. E a resposta "eu reconhecê-lo-ei pela introspeção", poder-se-ia dar nalguns casos, mas na maioria dos casos não.”
A determinação do que acontece jetzt corresponde a uma absolutização que cristaliza um momento no tempo. O que a perspectiva teórica faz é neutralizar a instantaneidade de tal forma que o que era naquele momento passa a ser para sempre. Há uma incomensurabilidade entre o momento da crise afectiva e depois as consequências.
 Mas as coisas têm impacto e para terem impacto precisam de zona de aceleração. O que nos deixa num determinado estado é essa sensação -- a determinação desses estados corresponde a formas de agressão, de invasão. Aquilo que estamos a identificar como jetzt pode ser o momento de compreensão de um axioma (a ahah experience), mas esse momento de impacto é datado e ficou para sempre. Fenómenos que se dão a determinada altura, mas que marcam alterações do modo de vida, esquecimentos, novidades na vida, mas que nunca vêm numa estrutura de toca e foge; pelo contrário, o referente vem sempre envolvido em sentido, ao ponto de não haver referente sem sentido, ou sequer de não haver sequer referente. De tal modo que cada impacto marca para o futuro tudo o que se vai viver: tudo o que vivemos faz moça para a frente -- na vida estamos sempre numa situação pós traumática, e nós temos é de nos habituar a essa nova presença em nós. A perspectiva de Wittgenstein é homeopática, como nos estoicos e em Nietzsche -- a filosofia como homeopatia.
Pensar que a nossa relação com o que nos envolve é sem referente: Deus é sem referente, o amor é sem referente... O que está em causa é o carácter sem referencial do sentido da vida que estamos a levar. O que está permanentemente em causa é a pergunta pelo sentido da atmosfera em que estamos envolvidos. Até porque na maioria da vida nós estamos a ir nas horas -- a pergunta é pela natureza deste ir indo nas horas, ou seja, de este ir indo na vida. De tal modo que cada impacto tem uma vivência absolutamente esquizofrénica -- tem uma vivência primordial e depois uma retrospectiva em que tento reconstituir esse primeiro impacto, e vivo nessa recapitulação e na perpetuação de um primeiro impacto que já é diferente.
A ideia de situação e de atmosfera está a tentar descrever o ambiente em que vivemos: vivemos como se estivéssemos envoltos numa bolha de sentido. de tal modo que as determinações fundamentais da vida podem ser todas da minha cabeça: Deus, o amor, a amizade, etc. Ou seja, elas podem estar só na minha cabeça, só fazem sentido na minha cabeça e na minha vida, não têm nenhuma referência. de tal modo que a frase "eu amo-te" lida por pessoas diferentes pode  ter sentidos diferentes (e quase certamente tem), e não tem nenhum referente. O referente está sempre contextualizado num sentido e é a experiência está sempre contextualizado num sentido e só existe porque existe um sentido que permite essa experiência.

89. Nós estamos aqui com estas reflexões no lugar em que o problema se põe, em que medida o lógica é sublime? Porquanto pareceria que lhe inere uma profundidade específica, uma Bedeutung geral. Ela subjazeria no fundo de todas as ciências, porquanto a consideração lógica considera a essência das coisas, ela pretende ver as coisas sobre o seu fundamento, e ela não deve preocupar-se com o ser assim ou assado do facto. Ela jorra não de um interesse pelo facto, nem pela necessidade de captar conexões causais, mas de compreender num esforço o fundamento/essência de tudo o que é conforme com a experiência

Wittgenstein: Nós não queremos aprender nada de novo, queremos apenas compreender qualquer coisa que já está aberta à frente dos nossos olhos.
(cita agostinho e a famosa frase do tempo -- "Quid est ergo tempus? Si nemo ex me quaeret,scio; si quaerenti explicare velim,nescio;fidenter tamen dico, scire me.")

As coisas surgem-nos na sua superfície, não apenas por vermos os lados que estão à vista (que se perdem se virmos de outro sítio), mas o que está em causa é a forma complexa da relação entre Grund e surgimento.
Uma coisa não é nunca um acontecimento isolado. A forma como referimos as coisas não tem uma forma de sentido que reduz as coisas à sua apresentação -- há uma metamorfose da minha relação com o referente -- entre mim  e as coisas há um sentido (= o espaço que está entre mim e o referente é o espaço lógico) -- e esse referente é posto por mim. Qual é a natureza da minha relação com o sentido que altera a minha relação com o referente consoante eu estou numa aula de geometria ou na vida quotidiana? O que está a articular a sala de aula? Ex. Viver numa cidade fantasma; ou o quarto da infância -- o meu quarto da infância não é o mesmo que outra pessoa ocupa agora, mesmo que esteja no "mesmo" espaço. Em última análise há uma impermeabilização do sentido da minha vida para outra pessoa qualquer, porque o sentido da vida das pessoas que determinam o sentido é diferente de uns para outros -- há tantas cidades de Lisboa quantos habitantes de Lisboa.
A importância do sentido é tal que para compreender uma coisa eu tenho sempre de contextualizá-la. Não consigo perceber uma coisa fora do contexto. Funciona por Zoom -- qual é a natureza mínima da unidade de conteúdo do contexto? O quarto está organizado no contexto da casa, e a casa do prédio, e o prédio da rua e a rua da cidade.
Do mesmo modo, o que dá contexto à nossa vida é a expectativa e a sequência. O que dá nexo e dá a conexão do sentido não é a sequência de momentos, mas o facto de o a priori ser a sequência -- nós estamos a ser levados sequencialmente a priori. A compreensão é possível, o sentido é possível por a vivência em sequência ser a priori;  não é o sentido que dá a sequência, mas a sequência que permite o sentido. Mas este a priori implica que a vida só se pode dar num contexto de sentido -- há uma petição de sentido intrínseca á vida, que é constituída pela nossa vivência a priori no tempo. A própria vida é dada na expectativa. De tal modo que o único acontecimento não anulável é o da lucidez -- posso não compreender o sentido, mas a vida é sempre dada pelo acontecimento de lucidez (a ψυχῆ é a vida). De tal modo que o que dá sentido e contexto é a sequência das horas ou seja, o que impõe a necessidade de sentido é a temporalidade. Assim, a vida é a totalidade do tempo e por isso a totalidade das coisas . O Problema é que o tempo não é visto. E é o fenómeno do estar a ser levado que permite pôr fora de mim o sentido -- faz parecer que é a vida que dá e que tira o sentido.

90. É como se nós tivéssemos de ver transparentemente as aparições. Mas a investigação não se dirige às aparições, mas às possibilidade das aparições. Ou seja, a articulação do seu sentido, a sua condição de possibilidade. Uma pessoa é uma aparição, e essa aparição pode alterar-se completamente (se eu me apaixonar a aparição da rapariga muda completamente).
Besinnen ; Besinnung. Tem Sinn na raiz -- significa qualquer coisa como dar sentido. Pode ser traduzido por meditatio -- uma forma de cuidado que faz um determinado pensamento (ex. da expressão "cuido que sim"). Na enunciação da aparição é o sentido que constitui as próprias coisas -- parece que estamos perante as próprias coisas quando estamos perante o espaço lógico (um espaço lógico que não tem nada a ver com a ideia de lógica do circulo de Viena) e que visa a estrutura antiga da oratio obliqua -- nós estamos sempre a citar-nos quando falamos. O facto de eu estar a falar pressupõe que sou eu que falo.
O ponto que importa focar prende-se com a ideia fundamental de que o sentido tem a sua origem no carácter absolutamente singular de cada um de nós. Nós executamos o sentido da própria vida. O que fazemos, fazemos por o ter compreendido. todos os infinitivos estão montados no irmos das horas que constitui a nossa vida -- a conexão é efectivamente o a priori, e não se trata de encontrar o nexo entre o agora e depois, mas na compreensão que o agora é já uma abstracção, o agora não existe a não ser como abstracção de uma sequência.

Uma agenda só faz sentido porque é nossa vida que está a em jogo -- o sentido é o a priori, a sequência é o a priori. É isto que agostinho refere de forma brilhante nas confissões.
Ao reduzir a Bedeutung ao próprio sentido, ou melhor, a possibilidade de neutralizar ao referente e a significação, e de a significação permite anular os contrastes entre sonho e realidade -- é o mesmo problema do Theeteto ( oposição entre ὑπαρ e ὄναρ)Se o fenómeno de sentido é totalitário, então o acontecimento de sentido é privado e dado num meinen (visar) e tem contornos absolutamente onírico.

TEMAS DE FILOSOFIA ANTIGA. 3ª SESSÃO. HANDOUT

3ª sessão. Handout. 19 de Feveiro, 2019 Sen. Ep. 58. 6.  Quomodo dicetur ο ὐ σία res necessaria , natura continens fundamentum o...