domingo, 9 de outubro de 2011
Caeiro, António de Castro, Experiência de Resistência in "Quid, Revista de Filosofia", ed. João Constâncio, 1, 2000"
I. O plano operacional da resistência como dimensionamento horizontal da pessoa no humano
Resolver a dimensão horizontal da pessoa no humano é a preocupação fundamental do empreendimento filosófico de Max Scheler. Todas as suas análises se encontram sob a égide de uma invocação da pessoa no humano, compreendida como a unidade última da vivência na sua concretude. A exposição do humano à presença massiva do horizonte pessoal constitui, na sua concrescência máxima, a base fulcral da investigação fenomenológica. Os mais diversos modos de vida, de vida com o mundo de coisas, de vida com os outros e de vida connosco mesmos, são compreendidos como atitudes e comportamentos pessoais, i.e., possibilidades do plano total do sentido.
A unidade concreta do horizonte pessoal funda as possibilidades extremas do comportamento humano. É o enraizamento das possibilidades extremas do comportamento humano que se pretende perceber, sendo necessário para o efeito a detecção do fio condutor que conecta os mais diversos planos operacionais na existência humana.
A experiência fundamental que procuraremos reconstituir na sua origem é a de resistência. A resistência é vivida na dependência de experiências vivas. Resistir a forma de agir pessoal. Acontece no horizonte de compreensão que se encontra fundado materialmente num a priori pessoal. A resistência individualiza, concreta e pessoalmente, o mundo em que de cada vez nos encontramos. É, enfim, a essência e as formas de vida nas quais desde sempre nós somos.
Ter-se-á, contudo, que experimentá-la naquela situação de insistência pessoal constituida por uma crise de desconjuntamento e despersonalização, oferecida à tensão fundamental da vida em direcção ao cumprimento do destino pessoal, ferido de morte.
As situações que oferecem resistência ao modo como a vida ocorre habitualmente, neutralizando o seu modo de ser, são o tema sobre o qual a fenomenologia abre a sua perspectiva. O tema da fenomenologia é a presença inóspita que importuna e persiste. Oferece resistência. Torna-se adversa. Ao interpelar a vida no seu todo, somos incitadados urgentemente a saber da nossa vida com o mundo. É na experiência fáctica que temos das mais diversas situações que nos são adversas, que oferecem resistência e transtornam o decurso livre e desimpedido da vida habitualmente habitável, que procuraremos encontrar a essência e as formas características do horizonte pessoal. Só um horizonte exposto à vulnerabilidade total pode sentir e oferecer resistência. É nos becos sem saída da vida, onde por vezes nos surpreendemos, que a filosofia encontra o seu tema.
II. Resistência em Dilthey
Foi W. Dilthey que no seu esforço de especificação dos fenómenos do espírito, ao delimitá- -los dos fenómenos objectivos das ciências da natureza, encontrou no carácter de resistência a sua base, essência e formas. Se os objectos das ciências naturais são de algum modo tidos, os das ciências do espírito são-nos oferecidos. A relação ter-tido passa a dar lugar à especificação fundamental da oferta como o modo de lhes acedermos, ou antes, o modo de eles se nos darem, numa afectação de adversidade. Pela sua inoportunidade e impertinência opõem-se-nos, obvêm-nos, como contra-tempo para o núcleo fundamental espiritual que alastra a tudo e tudo envolve. Quanto maior for a largueza com que se nos oferecem, maior é também a resistência que lhe damos. A resistência que nos oferece é combatida pela resistência que lhe damos.
Nos "Contributos para a Solução da Pergunta acerca da Origem da nossa Crença no Mundo Externo", mais exactamente no capítulo "Impulso e Resistência", Dilthey distingue o plano onde se encontra sediado o próprio eu do plano objectivo. Uma distinção feita a partir da tomada de consciência da resistência sentida a uma qualquer movimentação arbitrária. O esquema da experiência pessoal reside precisamente nesta cisão, trazida à consciência entre um querer e a resistência que especificamente lhe diz respeito. O estado volitivo, como lhe chama Dilthey, e a experiência de inibição de intenção são elementos indissociáveis da experiência humana.
É nesta oposição fundamental, entre intenção e inibição de intenção, que Dilthey procura ver o modo fundante do nosso acesso ao mundo, contrariamente à relação teórica entre o olhar que paira sobre os objectos (ou se lhes contrapõe), tal como era a pretensão de Kant no texto da "Refutação do Idealismo", na "Crítica da Razão Pura". Isto é, o acesso ao mundo não é primordialmente um acesso teórico baseado no acto de intuição. Antes, o acesso primordial revela-se radicalmente como por uma inibição de uma intenção da vontade. É na experiência de resistência oferecida à intenção de vontade, e, portanto, na sua inibição, que podemos ver o nosso acesso ao mundo no seu modo radical.
A alteridade que subsiste entre um mundo pessoal (que somos de cada vez nós) e os mundos de outras coisas e de outras pessoas, revela-se pela resistência que esses mundos constituem à nossa intenção de vontade. A inibição de intenções, que de cada vez nos movem a um qualquer objectivo, (a qualquer coisa ou a alguém), é experimentada como insatisfação de necessidades, como frustração de expectativas. A conexão íntima entre intenção e necessidade de satisfação, projecta várias possibilidades de desfecho. A necessidade de satisfação pode ser frustrada, preenchida e até mesmo excedida.
O humano é, assim, "um sistema de ímpetos" projectados em vista de uma necessidade de satisfação. É nesta "conexão" fundamental da dinâmica da vida que se esboçam intenções de movimentações que nos mobilizam para (ou desmobilizam de) um determinado cumprimento. É com base no entendimento do plano de fundo horizontal da vida humana, como sistema de intenções já aberto desde sempre, que as experiências de resistência se perfilam. A resistência apenas se pode constituir e resolver num horizonte que é a priori mais do que uma mera manutenção de objectos fixados por um olhar teórico que paira em suspenso sobre eles.
Na conexão estreita de oposição existente entre intenção de vontade e a sua respectiva inibição, funda-se o constrangimento patológico do modo como o mundo nos é dado. A decepção, o preenchimento ou o excesso de expectativas são indicados originária e primordialmente como fenómenos de insuficiência ou suficiência de satisfação. Os princípios emocionais de prazer e dor revelam-se como indicadores daquela conexão fundamental de vida, bem como os sentidos afectivos de que primeiramente temos consciência. Trata-se de formas de comprensão do modo como se dá a abertura ou o fechamento do humano à alteridade do mundo de coisas e do mundo dos outros. A relação e o comportamento humanos são indicados, por conseguinte, por estas estruturas patológicas afectivas ou emocionais, que se acham sob a dependência do a priori de compreensão do horizonte de vida como motivante de expectativas.
A dificuldade passa por enquadrar a lógica desta articulação entre intenção da vontade e respectiva inibição num horizonte total de acontecimento. Para o efeito, é requerido um deslocamento do seu espaço de acontecimento da região da vontade, diferente da da razão e da do sentimento, para um acontecimento fundamental global enraizado num a priori total de compreensão. Só uma tal deslocação, e consequente quebra de limites só aparentemente estanques, permite uma interpretação dos indicadores patológicos que leva depois a uma compreensão global do sentido. O que implica a determinação do fenómeno fundamental da vida como uma movimentação para alhures. Uma movimentação que desde sempre se encontra em exercício, activada, por assim dizer, no encaminhamento do sentido ou no seu desvio.
O genuíno enquadramento dessa movimentação global numa situação originária, aquem da compartimentação tradicional filosófica do horizonte do ser em faculdades, exige um outro questionamento diferente daquele que Dilthey estava preparado para levar a cabo. O seu horizonte não coincide com a movimentação regional da vida que é resultante de um ímpeto ou de uma intenção de significação da vontade, accionada por um querer que quer qualquer coisa que lhe é querida .
As perguntas a fazer são, então, primeiramente, pelo modo como as experiências de resistência podem ser entendidas, não como casos isolados de resistência, adversidade e inibição, mas como fenómenos fundamentais deflagrados em situações limite que perturbam o horizonte do ser no seu todo; e, depois, pelo modo como essa generalização pode ser entendida, integrada na lógica de compreensão da vida humana em sentido estrito. Isto é, a pergunta pelo modo como a movimentação generalizada da dinamização de tudo no seu todo pode ser entendida no horizonte específico do humano como humano e não no horizonte generalizado de todas as coisas.
A primeira pergunta é respondida se forem criadas as bases fenomenais que nos permitam desencadear um processo de emancipação da movimentação da vida, de tal modo que o seu ser não seja inaparente mas passe a dar-se a ver na aparição autêntica do seu deslocar-se. Tanto que o encaminhamento em que o ser da vida está lançado é experimentado na orientação para (e na direcção de) uma completude.
O vislumbre de uma tal estrutura fundante constitui uma situação originária, na qual nos encontramos, que nos situa no encaminhamento da vida. Abre-se, assim, o horizonte no qual não se manifestam apenas, de quando em quando, casos isolados de intenção e resistência (ou seja, instanciações localizadas no plano da vontade, sua realização e esforço), mas também a vida no seu todo. A vida como intenção, mas uma intenção de que não somos responsáveis, uma vez já por ela tomados no seu lance, e cuja posição no encaminhamento é identificada na medida da próximidade ou distância do fim. Identificada também no grau de resistência oferecida à execução e exercício do lance.
A resistência oferecida à realização de uma intenção destaca e selecciona conteúdos. A selecção torna-os perante nós como objectos, mas objectos que são elementos numa constelação de um determinado sentido situacional. O exemplo de Dilthey é ilucidativo. Quando estamos a trabalhar há um barulho determinado que se faz ouvir. O barulho não é sem mais o objecto de uma percepção acústica com um determinado volume sonoro, uma determinada frequência, proveniente de uma determinada detonação, etc., etc.; o barulho é experimentado como impertinente, perturbante, desconcertante e fonte de desatenção. O barulho inibe o trabalho, o sentido da intenção de realização da situação em que nos encontramos. O barulho é a resistência oferecida à dinâmica do trabalho. O zumbido de uma mosca, os canos de água com ar, um ruído musical, as vozes da vizinhança. Nada disto são objectos isolados que se nos antolham, mas resistências oferecidas à movimentação da situação em que nos encontramos. São contra-tempos.
Quando uma resistência se oferece, é compreendida de modo tácito como um impedimento que hipoteca o alcance da completude daquilo para onde estamos voltados. O contra-tempo funciona como indicador de verdade, faz ver que estamos numa situação tendencial para o preenchimento de um determinado sentido que é adiado, a cujo cumprimento oferece resistência. Ora, é por haver desde sempre uma movimentação a um fim para ser cumprido, esteja ele determinado ou não, mais, seja ele determinável ou não, e por ser requerido tempo para que a movimentação se mova, que há de todo em todo resistência.
As adversidades não provêm do mundo enquanto mundo de objectos. Constituem-se na medida em que a lógica da compreensão do sentido da vida humana é a relação sintética entre um projecto que está delineado como encaminhamento para uma completude e ao seu preenchimento ser oferecida resistência. O tempo é sempre um atraso de vida, um contratempo, que resiste no seu escoamento, no seu afluxo.
A experiência de resistência funda a realidade dos objectos, na medida em que abre para o modo como horizontalmente nos comportamos relativamente a eles. A resistência oferecida faz-nos ver a relação que detemos com as coisas no seu todo, o sentido da presença das coisas reais dada num plano global em que estão inseridas. A resistência mostra a característica fundamental da vida como uma mera possibilidade de vir a um preenchimento ou a uma decepção.
III. Contrariedade em Kant
O conteúdo moral é determinado em Kant na experiência de resistência. Na Fundamentação da Metafísica dos Costumes, numa passagem em que se procura determinar o sentido de uma acção com conteúdo moral, quer dizer, uma acção praticada em conformidade ao dever, diz Kant o seguinte:-
"…conservar a vida é dever, e além do mais ninguém tem uma inclinação imediata nesse sentido. Mas não é por causa disso que a preocupação angustiante, que a maior parte dos homens têm com isso, tem algum valor intrínseco nem essa máxima tem um conteúdo com teor moral. Os humanos mantêm a sua vida, na verdade, em conformidade com o dever mas não por dever. Pelo contrário, quando contrariedades e a aflição deseperada retiraram por completo o gosto pela vida, quando o infeliz, de ânimo forte, mais indignado com o seu destino do que desalentado ou abatido, deseja a morte, e, contudo, conserva a sua vida, sem a amar, não por inlcinação, ou medo, mas por dever; nessa altura, a sua máxima tem um conteúdo com teor moral." BA, 9, 10
A determinação do sentido da acção como realização de um acto cujo teor e conteúdo é moral, é feita, assim, através de uma dissociação dos planos que estruturam a situação humana em geral e a moral em especial. O texto aponta para operadores fenomenológicos que funcionam na nossa vida ainda que anonimamente. Por um lado, um ponto de vista meramente passivo e pragmático. Por outro, um ponto de vista verdadeiramente resolutivo.
A diferença é operada a partir do reconhecimento do facto tácito de que estamos num lance de vida. Encontramo-nos desde sempre a viver. É por isso que não temos nenhuma inclinação nesse sentido. Ou seja, estamos, antes, desde sempre e a cada instante a resvalar por esse declive. Uma vez promulgado este facto, é possível distinguir a simples conservação da vida feita em conformidade com o dever da sua manutenção por dever. Uma coisa é conservar ou manter a vida por uma inclinação imediata nesse sentido, ou seja, por uma espécie de facticidade a que não regredimos na sua causa ou fundamento. Outra coisa, completamente diferente, é viver numa situação de opacidade total relativamente ao seu desfecho, sem saber para onde se está a ir, ou, antes, sabendo até que a vida decorre numa movimentação absolutamente contrária à nossa tendência imediata e espontânea.
Kant considera aqui uma situação extrema da vida humana, o abatimento de contrariedades, de circunstâncias na vida que se transformam em adversidades, cuja disposição é a aflição desesperada que retira por completo o gosto pela vida. Uma tal situação tem também uma inclinação, não na tendência de uma conservação da vida, ou manutenção dela, mas uma tendência no sentido contrário, uma tendência que deseja a morte.
O desalento e o abatimento levam a desejar a morte. Ou seja, uma coisa é o sentido da movimentação da vida que se funda num sentimento de prazer e de desprazer, coincidindo, de alguma maneira, com movimentações de fuga ou de perseguição alicerçadas na inclinação imediata e passiva, enquanto reacções deflagradas pela situações em que nos encontramos. Outra, absolutamente diversa, é erigir uma força de vontade que faz querer prosseguir a vida, dar-lhe continuidade, apesar de tudo estar contra, inclusivamente, o gosto que não fazemos por estar vivos.
"…e, contudo," prossegue Kant, "o infeliz … conserva a sua vida, sem a amar, não por inclinação, ou medo, mas por dever; nessa altura a sua máxima tem um conteúdo com teor moral."
Para além da total afectação em que somos vividos pela vida, para lá da inclinação e tendência imediatas que nos levam a desejar isto e aquilo, além da afectação contrária que nos leva a ter medo, sentir angústia, ter desgosto, etc.,- há uma possibilidade de aceder a uma estrutura de sentido que estrutura as situações em que de cada vez nos encontramos que transcende a matéria determinável das inclinações e dos indicadores patológicos e acede a uma abertura resolutiva que vai contra a tendência patológica da angústia, do desgosto, do medo, da desistência. Pode-se resistir a esse bloqueio completo que se oferece. Kant traz à expressão essa abertura resolutiva pelo termo vontade.
É a vontade que abre a possibilidade de conservar e manter a vida sem a amar. É a força de vontade que faz querer viver, que resiste ao desgosto e à aflição, que resiste à inclinação contrária do sentido da situação de vida extrema em que o infeliz se encontra. Tudo se passa como se se estivesse na situação limite da vida, desejando morrer e querendo, apesar de tudo, mas mesmo tudo, viver. O que dá força à vontade e motiva o querer viver é uma abertura que nos faz apaixonar pelo dever.
É o dever que nos abre à possibilidade de escutar uma imperatividade categórica. O conteúdo da imperatividade categórica faz-se sentir na sua simplicidade. Comanda categoricamente a resistir. A resistência é feita contra a contrariedade que provoca toda a perturbação e opacidade patológicas. Mas resistir é aqui fazer força para nos expormos à vontade que nos faz querer viver, mesmo contra a própria vida.
Quando nos encontramos na situação considerada por Kant parece que tudo se desmorona, parece estarmos a despedaçar-nos. Por um lado, apetece-nos contrariar a dimensão que nos mantém ainda em vida. Desejamos que cada novo instante nos leve desta para melhor. Ao mesmo tempo, porém, experimenta-se fortalecida em nós uma vontade que nos faz querer ser. A vontade exposta ao dever transforma o ser por ser num ser com conteúdo moral, num ser com sentido. O dever surte o seu efeito sobre nós, fazendo-nos apaixonar por ele. Pela primeira vez, sente-se que, verdadeiramente, se faz vida. Faz-se a hora quando não esperamos pela seu advento.
A realização do conteúdo "manter-se em vida", "conservar a vida" é um modo formal de viver, ou seja, não corresponde a nenhum conteúdo, ou sequer a um qualquer comportamento, ou acção psicológica. A enorme dificuldade que há em perceber como se pode manter a vida quando tudo está contra não é a decisão de viver por viver. Não se trata de uma decisão feita assim sem mais, sem ver o modo como ela é realizada, não se trata de um ganho de tempo para que venham melhores dias. Que esses dias tragam estas e aquelas alegrias, estados de alma, disposições de ânimo, pessoas, situações ou circunstâncias. O que acontece numa tal resolução é a possibilidade monstruosa de fazer a ponte entre dois instantes de vida, cuja distância é a eternidade. Para poder querer continuar a viver, é necessária uma abertura da vontade que resolve o nó apertado de cada instante e o abre para um outro instante. Essa possibilidade é a forma pura da vontade para além da matéria e das circunstâncias que constitutem a situação em que nos encontramos. Pode-se continuar porque a vontade quer a continuação para além dos princípios de prazer e de desprazer. O modo dessa continuação é a forma de um acto moral. O seu conteúdo é paradoxalmente um conteúdo formal, puro, para lá do estreitamento, opacidade e resistência da situação em que de cada vez nos encontramos. Esta experiência que se apresenta de uma forma aguda realiza um conteúdo moral- continua na medida em que resiste ao sentido. Quando se vive nesta dimensão faz-se sentido. O sentido é feito pela vontade que quer continuar com o desejo de morrer.
IV. Interpretatividade do horizonte sentimental
O esforço de Scheler vai no sentido de criar as condições necessárias para o aparecimento de uma base fenomenal, a partir da qual se possa dimensionar autenticamente o âmbito de afectabilidade da pessoa no humano. Um âmbito a respeito do qual a manifestação pessoal prática corresponde a uma forma de abstracção, a um aspecto, que embora importante, tem de ser integrado na possibilidade plurifacetada da pessoa. A unidade pessoal subsiste nas profundezas da vida humana. Abre-se à vida daquele modo concreto e autêntico que lhe permite compreender como se acha no mundo que de cada vez encontra. A pessoa concresce para as mais diversas vivências da vida, situando-se de cada vez no mundo. Mas o concrescimento que sedimenta e densifica os mais diversos tipos de relação e os mais variados comportamentos pessoais com o mundo é anterior a qualquer interpretação do que de cada vez se trata. A interpretatividade destes fenómenos depende do horizonte pessoal que de cada vez sabe o que se passa, podendo fazer de tudo, pelo seu comprometimento, um caso pessoal.
A pessoa no humano pode, no entanto, permanecer alojada num plano subliminar que a impede de explicitar as suas vivências e experiências de modo verdadeiramente pessoal. Pode não se abrir explicitamente ao que verdadeira e autenticamente há de genuíno em cada situação, destacada de modo abstracto, de um todo concreto, uma situação prática. No entanto, partindo desse aspecto fundamental da interpretação e compreensão dos fenómenos humanos, é possível, aceder ao modo como a vida é vivida na sua estrutura concreta e pessoal. Com base na identificação formal dos fenómenos práticos em Kant, podemos alargar o sentido restrito do seu âmbito a um a priori pessoal. Um a priori que possa ser experimentado tal como espontânea e concretamente a pessoa vive, antes de qualquer cisão nuclear que a faça aparecer multifacetada. Mais próxima, portanto, daquela estrutura originária pessoal que, uma vez lesada, promove o colapso generalizado do sentido e faz emergir tudo numa situação de resistência global ao pleno desenvolvimento das capacidades e potencialidades pessoais.
a) Colapsos
A pergunta pelo tipo de ser do pessoal só pode ser feita, se (e apenas se) houver uma experiência de desenraizamento tal que a insistência da vida em estar presente, depende de uma forma de abertura e acesso que permite continuar, dar sentido à transição de um momento de tempo para outro momento de tempo, enfim, resgatar cada instante à sua aparente impossibilidade.
É a lesão do núcleo fundamental da pessoa no humano que conduz ao colapso global do sentido. Scheler invoca Kant porque as suas análises também conduzem à experiência da pessoa no humano exposta àquela situação horizontal última, que ameaça de ruptura os diversos horizontes de investigação transcendental. Mergulha tudo num estado de perturbação e incompreensão, deixando de haver lugar para uma compartimentação de regiões com fronteiras claramente demarcadas.
Quando se pergunta de si para si o que me é permitido esperar? Está-se numa situação de vida concreta, aquém da constituição de âmbitos de investigação filosófica, dos comportamentos prático e teórico relativamente aos seus temas respectivos. A pergunta pelo que é permitido esperar, modifica o sentido da pergunta pelo que se pode saber e pelo que se deve fazer. É a impotência para esperar que concretiza o sentido do que há a saber e do que se deve fazer. Quando não se pode saber nada e quando se fez tudo o que se não deve, o que é permitido esperar? Que ser é este que está hipotecado de todo em todo a uma dimensão equacionada na esperança, numa estrutura de sentido fundada num futuro possível, que não tem anulada a sua característica de futuro mesmo quando está completamente fechado. Que tipo de ser é este, que tipo de existência é esta que, apesar de não lhe ser permitido esperar nada, ou não saber o que lhe é permitido esperar, continua? Como oferecer resistência na autêntica dimensão estrutural em que a vida se potencia, em que a vida do humano é, em que eu inexoravelmente sou, existo?
Ao ser alargado o horizonte de compreensão dos fenómenos de resistência, experimenta-se um incremento do grau de concretude com que são vividos. Passamos a estar envolvidos numa situação que nos obriga a estar implicados na (e comprometidos com a) vida no seu todo. A expansão dos limites fronteiriços que demarcam as possibilidades, dadas à partida, de sofrermos experiências de resistência é acompanhada pari passu pelo aumento da vulnerabilidade do núcleo fundamental, que torna todo e qualquer acontecimento num caso pessoal.
Com Dilthey aprendemos de que modo é que a experiência de resistência opera a possibilidade de abrirmos o horizonte dos fenómenos das ciências do espírito. Com Kant considerámos o modo como, em face de contrariedades na vida, podemos constituir a possibilidade extrema de lhe oferecermos resistência. A experiência de vida, por que aí passamos, tem um teor de forma e conteúdo, resultante do respeito reverente pela pessoa no humano. A experiência de contrariedade, e a correspondente resistência que lhe é oferecida, convoca-nos a um prestar atenção e a um cuidado a ter com a pessoa em nós, até então aparentemente inexistentes.
b) O caso pessoal
Ora bem. Feito o ponto da situação a que chegámos, talvez fosse importante agora, antes de mais, perceber o modo como o que se passa na vida pode passar a ter um cunho pessoal que o transforma num acontecimento da minha vida. Importa, portanto, entender como se processa a aproximação aos fenómenos em causa, até à distância em que os tornamos casos pessoais.
A desformalização permite entender os fenómenos da vida como fenómenos vividos de modo concomitante com a unidade de sentido pessoal que lhes está co-presente. É o núcleo fundamental do sentido que se inteira deles; que lhes dá uma consistência pessoal; que os concretiza. A unidade de sentido nuclear pessoal é a estrutura concreta fundamental da vida. A vida e a pessoa em nós co-existem numa intimidade e proximidade absolutas, não obstante, essa co-existência poder estar votada ao anonimato.
A zona nuclear pessoal está desde sempre a ser movida num lance, que desde sempre encontramos aí. A vida não é o que levamos. Antes, dever-se-ia dizer que é ela que nos leva. É que, pese embora nos pareça que levamos esta e aquela vida, estamos é, na verdade, desde sempre a ser levados por ela, como que arremessados num lance. É essa forma de agência que especifica diversas circunstâncias e situações de movimentação, que faz ter intenções e compreende o sentido dos seus desfechos.
De que modo se dá, então, o acesso a uma zona fundamental de sentido, cuja estrutura está desde sempre em plena movimentação? Como podemos acompanhá-la na sua concretude máxima? Estas perguntas incidem sobre o modo específico de como o humano se experimenta a ser: na tensão não anulável para alhures. Uma tensão tendencial que é revelada pela experiência de resistência.
c) O horizonte sentimental
Pelas análises de Max Scheler podemos identificar o núcleo fundamental da estrutura originária pessoal. A esfera do pessoal é propriamente um plano operacional. A sua função específica é concretizada no sentir. O seu modo de sentir é equipotente ao modo de compreender na sua especificidade noética. Sentir e compreender são funções cooperadoras elementares desse acesso.
É o sentir que permite compreender como alguém se sente. Toda a gente se sente de alguma maneira. Ao sentir-se desta ou daquela maneira não se desvelam apenas características sentimentais, emocionais ou afectivas de cada um de nós. Ao sentirmo-nos de alguma maneira, revela-se-nos o mundo em que nos encontramos, os outros com quem estamos, a vida que levamos. O sentir abre-se a tudo de forma imediata e espontânea. Compreender é cooriginário com sentir.
Scheler não analisa objectos, numa relação noético-noemática entre um ver e um visto, mas o modo como a experiência de resistência nos acontece. Independentemente de interpretarmos a resistência experimentada como sendo a parte rei ou a parte nobis, importa perceber que a eclosão do fenómeno de resistência nos rebenta na nossa vida. Essa deflagração é experimentado numa modalidade sentimental. A resistência sente-se com perplexidade e perturbação.
A importância desta descoberta resulta do facto de os sentimentos se constituirem por si. A vida manifesta-se não como um objecto, mas como um movimento. O apriori desta movimentação onde se constituem possibilidades ou impossibilidades é revelado por um movimento de contrariedade que tem uma importância consoante o escalonamento do valor em que acontece. Ao analisarmos estas resistências não estamos nunca numa posição de reacção. O esforço de compreensão é uma movimentação de combate, uma decisão que procura resolver o que de cada vez acontece e apurar o teor dos fenómenos que se dão na vida.
Sentir é abrir-se ao sentido que de cada vez configura as diversas situações em que nos encontramos. Um comportamento teórico não o conseguiria fazer. Para saber o que se sente é necessário uma predisposição para nos sintonizarmos com o acesso. No limite, aceder é sobressair para qualquer coisa, sentir-se estarmos envolvidos pelo que se faz sentir. Um sentimento que não é tido, por assim dizer, mas que é o que somos, existe por nós, para nós e em nós. Não há qualquer distância entre o acontecer e o acontecer-nos a nós. Para se perceber o que se sente, temos de existir na dimensão imediata da proximidade absoluta da experiência.
Sentir abre imediata e espontâneamente para o que se sente. O que é sentido com uma proximidade e intimidade absolutas é cada situação de vida sob cuja dependência desde sempre nos havemos. A eclosão do sentido anula distância, faz explodir a nossa própria instalação no decurso do tempo.
É o próprio passar por uma situação, o próprio estar a ser, que faz perceber o modo de se sentir isto ou aquilo, desta ou daqueloutra maneira. O sentido é destilado pela situação que nos situa, assim, sentimentalmente. A situação situa-nos, expõe-nos ao seu sentido, deixa o sentido fazer-se sentir. Quando dizemos, por exemplo, ‘estamos aflitos’ trazemos à expressão um acontecimento dado a partir da presença sentida da aflição. Mas essa presença é interpretável por nós pela transparência da situação pela qual estamos a passar. É nela que nos encontramos. O afligirmo-nos é o teor da nossa relação com a situação em que de cada vez nos encontramos, com o que fazemos, com o que somos, com o que nos acontece. Esta compreensão do que se passa excede o simples facto de estarmos aflitos. Sabemos que sentimos, sabemos como nos sentimos, percebemos de que aflição se trata.
Para Scheler sentir o que se passa é o nosso modo pessoal de nos abrirmos ao mundo, enfim, de sentirmos as coisas. Cada um pode ter a sua maneira de sentir, porque de antemão o núcleo fundamental pessoal existe orientado por sobressaliências sentimentais. O sentido das coisas é determinado pelo sentimento que por elas temos. Um sentimento que nasce e cresce a respeito de tudo o que é vivido.
Sentir não é, portanto, um mero fenómeno subsidiário, que sirva apenas de acompanhamento ao que de cada vez é visto numa consideração teórica, mas o que verdadeiramente faz explodir o horizonte hermeticamente fechado da nossa incompreensão do que se passa na vida e permite perceber as situações em que nos encontramos, pondo-nos nelas, para sermos afectados por elas e estarmos à sua disposição.
Sentir é o plano operacional que nos situa num horizonte de valores, entendendo por valor o teor sentimental que dá e retira importância a uma determinada conexão intencional. Saber o que se sente é uma possibilidade extrema do modo de existir pessoal. A existência pessoal é plena quando se dá o reatamento da nossa relação originária com o mundo. Um tal reatamento dirige o sentir, fá-lo nascer e crescer a respeito de qualquer coisa ou de alguém. Indica-nos o que se sente. Na abertura sentimental sabe-se o que se sente a respeito do mundo. Passamos a viver de acordo com uma movimentação numa determinada direcção. Ao sentir-se o que se sente a respeito do seu objecto, concretiza-se a possibilidade extrema da relação intencional. Não se consegue dizer verdadeiramente que o sentimento está encerrado na esfera do eu, nem que o objecto é o que é mais a coloração sentimental, como se houvesse dois planos absolutamente distintos.
O sentimento nasce e cresce; ou deixa de se fazer sentir. Desaparece. Mas ao sentir-se dá-se um saída para fora da esfera hermeticamente fechada do eu. Sentir-se um sentimento por qualquer coisa é a possibilidade da abertura fundamental em que o mundo é sentido, numa presença privilegiada, transparente. Sentir é um acontecimento extravagante, extático; excêntrico.
Quando se estabelece a ligação entre a pessoa no humano que sente e o mundo sentido (de coisas e dos outros), passamos a ficar situados no horizonte de questionamento da vida no seu sentido. Faz parte da própria natureza da existência pessoal ser numa movimentação que se expande ou se contrái; que se abre ou se fecha. A essência da intencionalidade para Scheler é compreendida no seu carácter genuíno na sua concrescência sentimental. Só neste espaço de sentido há verdadeiramente preenchimento e decepcção.
O que sabemos das diversas situações em que estamos dispostos é o modo como nos sentimos aí. Os modos extremos de nos sentirmos na esperança e no desespero abrem-se ao nosso saber deles, situando-nos aí. Passamos bem ou mal conforme estamos numa boa ou má situação. Quando expostos ao júbilo e à exultação atravessamos a vida em bons momentos que resvalam por aí fora; e quando estamos aflitos parece que a passagem da vida é estrangulada, atravessamos um mau momento.
O apriori da vida é assim compreendido quando se reata a ligação com a movimentação originária que se sente como passagem, como momentos que se atravessam. É o sentir que permite experimentar a resistência à vida, que as mais diversas situações, de cada vez, nos oferecem. As experiências de resistência são vividas como impedimentos horizontais generalizados. São essas experiências, no entanto, que também nos obrigam a uma convocação do sentido, ao produzirem uma modificação dramática na experiência de vida; ao obstruí-la. A expectativa em que nos encontramos de realizar potencialidades e, assim, de existirmos, é interrompida.
A movimentação originária em que nos encontramos traz consigo a oscilação sentimental entre a impossibilidade total e a possibilidade máxima de a esperança rasgar futuro. Estas possibilidades limite são possíveis porque de antemão estamos confinados a esta osclição entre possibilidades e impossibilidades. A posição intermédia corresponde à aparente imobilidade da vida, ou à sua aparente neutralização.
V. Os fenómenos de resistência no horizonte pessoal em sentido estrito
Compreendemos a situação em que nos encontramos, mas não a conseguimos explicitar de forma cabal tanto na sua forma como no seu conteúdo de cada vez determinado. Ainda assim, apercebemo-nos da vida como uma mobilização total para uma abertura. Uma mobilização indispedível, que se faz sentir inexorável. É sob essa motivição fortíssima que nos encontramos. Há uma expectativa que espreita por nós e em nós em direcção a uma completude e realização que verdadeira e autenticamente nos encha com a plenitude do sentido. À espreita, quer dizer, aguardando o recolhimento na benção de poder ser aí, no abrir desembargado, extravagante, que nos faz resvalar precipitadamente de lapso de tempo em lapso de tempo, de um modo desabrido. Como se houvesse uma espécie de lance, de projecto, mesmo que habitualmente não se releve, não se perfile, enfim possa não ser identificada.
A espera que nos faz estar à espreita e a aguardar pode também ser vivida como adiamento distendido e alongado. A espera oscila entre a iminência de qualquer coisa acontecer daqui a nada e o desespero disso nunca mais acontecer. Somos na antecipação global do preenchimento de sentido. Apenas de caminho mobilizados completamente para aí, podemos também ficar na tensão vazia que faz implodir e suspender toda e qualquer motivação. Às vezes escapa-nos o que essa expectativa em nós e por nós quer. Quando estão reunidos os esforços numa vontade absoluta de querer, quando nos encontramos na densidade sufocante da enorme expectativa que nos alimenta para uma espera, concentramo-nos exclusivamente num sentido de movimentação, numa única direcção possível, com uma única orientação.
Nós não conseguimos bem dizer quando deixamos de esperar. Não datamos exactamente o momento do desanuviamento, da batida em retirada, da deserção. Sabe-se apenas que a situação deixa de ser vivida na textura da densidade e da tensão absolutas para aí. De repente, já não estamos para aí voltados. Sobreviventes à rigidez intransponível da resistência, espanta-nos ser ainda. Continuar. Mesmo depois de defraudada o que se pensára ser a única coisa que fazia sentido querer. O acesso compreensivo a essa movimentação fundamental enraíza-se num acontecimento de sentido pessoal e é esse acontecimento que faz mundo, escondendo-se, porém, na aparente imobilidade e inexistência da dimensão em que inere.
Desde sempre, sabemos se estarmos a aproximar-nos ou a afastar-nos do sentido antecipado. É em função desse apriori que deixamos de estar numa interrogação teórica e passamos a estar voltados para o fenómeno intencional pessoal, acedido numa manifestação afectiva e compreensiva simultaneamente. Ou seja, é o plano cooperante de estruturas afectivas e compreensivas que conformam o sentido, situam e nos orientam. O nosso saber do modo como nos encontramos constitui-se espontaneamente. Saber de nós e encontramo- -nos num modo de ser coincidem por assim dizer connosco. Isto é, não nos abrimos para o que somos, para o modo como nos encontramos como se o ser que somos e o modo como nos encontramos fossem estivessem excentrados, distanciados e alienados de nós mesmos. Nada neste plano de ser corresponde a uma de tematização ad libitum. É-se, se assim se pode dizer, o abrir-se para a situação em que se está, sendo-se essa própria situação. O interesse é dado pela criação ou formação da situação em que de cada vez nos encontramos, sendo a situação que situa, nos acha ou perde, nos encontra ou esconde.
A análise de Scheler não é uma análise de objectos porque o que se detecta não é uma relação teórica entre um ver e um visto, mas trata-se de um acontecimento que permite identificar a situação teórica como uma forma de suspensão afectiva, de auto alienação e aversão da situação em que nos encontramos, porquanto paradoxalmente o que orienta e dirige para lá é um sentido que não podemos detectar, que está já a abrir sentido, a preocupar, a destacar e a seleccionar conteúdos.
Para Scheler, a análise fenomenológica processa-se pela explicitação e compreensão do sentido de cada situação que se constitui numa experiência de adversidade, uma experiência que nos oferece resistência ao movimento da vida em que nos encontramos, ao caminho a ser feito. A vida manifesta-se como uma movimentação que, primária e originariamente, é contra nós, é um contra-tempo entre nós agora aqui e o momento aquando da hora da nossa morte. Toda a experiência de resistência se dá ao revelar o caracter fundamental da vida como um contra-tempo à morte. A resistência oferecida não mostra apenas o caracter habitualmente subterrâneo e clandestino da movimentação como o facto fundamental que caracteriza o modo de ser da vida humana. Mostra também como o sentido pode ser de tal forma suspendido na possibilidade do seu preenchimento que nos vemos afastar dele inexoravelmente.
Importa agora que nos centremos nos fenómenos que nos afastam e desmobilizam da espera. Quando se constituem as resistências que passaremos a analisar, que actuam como operacionais temporais, adia-se a esperança e constitui-se o desespero. Nesses tempos vive-se embargado e proscrito. É o sentido desse embargo e dessa proscrição que passa agora a estar em análise.
1) Arrependimento
a) Acesso ao fenómeno do Arrependimento
O primeiro fenómeno de resistência a considerar é o fenómeno de arrependimento. Segundo Scheler, quando passamos por um fenómeno de arrependimento, não é possível determinar qual o sentido do desfecho de um qualquer acto perpetrado e do qual nos arrependemos. O arrependimento cega-nos para o futuro, fecha-nos ao presente, prende- -nos ao único passado em que não queremos estar. O passado do arrependimento é que nos faz experimentar a impossibilidade de não ter sido. Quando acontece o que não podia ter acontecido de maneira nenhuma, esse acontecimento não é ultrapassado, mas permanece como o sentido do futuro, de um futuro fechado que bloqueia o presente.
O acto perpetrado tem em si um conteúdo que corresponde a uma dimensão natural. O conteúdo é um conteúdo no mundo. Quer dizer, corresponde a um ponto no tempo objectivo. De algum modo, podemos esvaziar de sentido todo e qualquer fenómeno, a partir do momento em que o despessoalizamos, o tornamos sem vida, avivencial. Ao coisificar um determinado acontecimento da nossa vida, fazemos perder a referência pessoal em que ele é e existe como fenómeno do espírito, com o seu valor incólume ou lesado. Assim também a sua temporalidade é despessoalizada, descaracterizada. O seu tempo é um tempo físico, calendarizado.
Mas quando deflagra a culpa e nos reconhecemos na falta em que estamos, e nos abrimos à falta em que somos, o conteúdo do acto deixa de ser visto como uma fase pontual, localizada na ordo et connexio rerum; como que esgotando-se nos momentos em que se demora a durar, para desaparecer, quando os momentos foram já atravessados, como todas as coisas que perecem e não permanecem, mas deixam de ser, sem surtirem qualquer efeito. O conteúdo da culpa faz-se sentir numa temporalidade diferente. Está presente mesmo que de forma anónima em todos os momentos da nossa vida. O ser da culpa não implica actualmente ter-se perpetrado um acto que involva culpa. Cada momento de vida é inane, vazio de futuro. O passado pode ser o passado da culpa que nos faz arrepender, porque a sua própria estrutura é a do cancelamento de possibilidades a cada instante, possibilidades de vida que não podem ser repetidas, que são levadas para sempre. O passado da impossibilidade não passa. Ele ultrapassá-nos de tal maneira que é o nosso futuro é impossibilitado. Ele está sempre à nossa frente.
A essência do sentido da culpa é a impossibilidade de restituir o que lesámos, a pessoa em nós, no outro. Tudo nos aparece na impossibilidade de ser amortizado. A nossa relação e o nosso comportamento relativamente à situação de culpa vai no sentido de o querermos rejeitar, expulsar para fora da nossa vida, para fora do mundo, torná-lo passado como se não tivesse sido. Contudo, é isso mesmo que não é possível. Segundo a distensão temporal, em cada momento da nossa existência está sempre dada a vida no seu todo. E agora tudo é culpa.
Os conteúdos da situação de culpa são trazidos à presença por um sentimento. Sabe-se inapelável e inexoravelmente o que se sente. Sente-se uma dor aguda e um sofrimento atróz. A pessoa em nós que está de forma concomitante copresente a presenciar todos os actos por que somos levados, sente-se lesada. A situação faz-se sentir como o paroxismo limite e derradeiro. A sua lógica é a do desespero. É a impossibilidade resultante da ultrapassagem de nós pelo passado, que fecha expectativas, que faz repetir a mesma coisa que se é, o que faz deflagrar e detonar o sentimento de dor que alastra a tudo. Pelo fenómeno do arrependimento, a dispersão do modo como vivemos antes de se dar a culpa, o carácter excêntrico e extravagante que nos leva a uma precipitação e à fuga para a frente passa a alterar-se. Dá-se um comportamente de recolhimento que não passa sem mais por um "arrepiar caminho", mas antes resulta de uma paragem a que somos obrigados. A forma como se dá essa alteração do modo de ser é de tal modo abrupta, que nos sentimos colhidos, sem escolha possível de querer ou não querer passar por essa situação. Essa alteração dá-se de modo inesperado, contra a nossa vontade e de modo repentino. A alteração não coincide portanto connosco. É espontânea e domicilia-se na pessoa em nós. A forma do seu acontecer é oriunda das profundezas da vida, de uma lucidez nem sempre vigente, mas que, ao abrir-se-nos, nos acorda, sacudindo-nos para fora do modo torpe e entorpecido.
A dispersão extravagante, o movimento precipitado e centrífugo, a fuga para a frente, que tudo e todos arrasta, numa onda de destruição, leva-nos pela inanidade do prazer ou da ira, faz-nos sentir o aumento da escalada da violência sentimental. Oferecer uma resistência a essa tendência da vida, revela-se-nos com toda a sua brutalidade. Tudo parece impedimento a ser. Essa modificação radical do modo de ser colhe-nos violentamente ao movimento de precipitação. Sem escolha, obriga-nos a um recolhimento. O conteúdo desse recolhimento é sempre o mesmo. A rejeição completa e total da vida que se leva, expulsa-nos inapelavelmente para fora do mundo. Todos os laços que nos unem aos outros próximos de nós, dos mais fortes e afectivos aos mais ténues, que nos ligam à humanidade no seu todo são rompidos. Toda a forma de relacionamento com o mundo, desde o simples olhá-lo num dia de Verão até aos mais estreitos, como quando nos despedimos de um sítio onde vivemos, são distorcidos. Como que interrompidos ou então vistos na impossibilidade da transição, da apropriação, da vontade do querer, do afecto, da ternura do que quer que seja.
O recolhimento isola-nos, esvazia e torna inane toda e qualquer forma de in-sistência no mundo. O arrependimento revê a vida que se leva e o mundo em que se vive. O seu conteúdo é afectivamente dor, sofrimento, amargura, tristeza. Mas o que nos faz sentir culpados é a própria lógica da vida. Estamos fundamentalmente em falta, ultrapassados pelo nosso ter-sido, mas um ter-sido cujo sentido é já não ser, não poder ser repetido, não voltar a acontecer. Tudo é visto à luz da situação de oportunidade perdida. Sem nenhuma outra oportunidade, deixamos de querer o mundo. Passa a dar-se uma afectação de rejeição do conteúdo mundo e de todos os modos de relacionamento com ele, do que nele fazemos, havendo uma convocação para si, de tal sorte que apenas se quer isto, não ser aquilo que se foi. É preciso abandoná-lo, desistir dele. Abdicar dele e renunciar a ele. Só assim se abre um novo horizonte, em que o futuro não seja o que houvera sido. Nessa renúncia não se experimenta apenas negatividade. O que é abandonado é apenas o sentido dos laços que nos ligam ao mundo, que torna tudo e todos a cada instante um mundo de possibilidades perdidas, que nunca mais nos assolaram, que não estão aí para ficar. Só uma tal renúncia e a paixão por uma tal renúncia nos entrega ao futuro. A um outro futuro do mundo, que nos albergue, que transforme o passado no futuro que sempre houvera sido.
O primeiro momento do arrependimento é, assim, o da rejeição compulsiva do que se foi. O seu momento de lucidez é o limite da incompreenão. Esses dois momentos constiutem o modo de resistência porque nos leva a um passado, a uma captação catastrófica do olhar, a um entristecimento. Permite, por outro lado, identificar esse conteúdo como o resultado do excesso, de uma transgressão, de uma saída para fora dos eixos.
b) Arrependimento e resistência
O que é que têm em comum o fenómeno da adversidade e resistência e o fenómeno de arrependimento? De que modo é que o fenómeno "arrependimento" indica uma dimensão do passado diferente daquela a que acedemos habitualmente, de tal forma que não se trata de um passado já acabado, que não move, mas antes de um ter sido que é ainda tido em vista, que subsiste ainda nas profundezas da nossa vida, insistindo em ser ainda o futuro que há para sermos? Como é que se insere o fenómeno do arrependimento na esfera pessoal?
"…a consciência constante de que tanto o mundo moral na sua totalidade quanto o mundo do passado e do futuro poderiam ser outros, se eu fosse radicalmente diferente."
O arrependimento faz-nos ver quem somos, do que somos capazes, sendo capazes de tudo, sendo tudo aquilo de que somos capazes o limite. O pior de tudo. O arrependimento faz-nos viver no isolamento da vida que há para viver. A vida que se leva é o conteúdo do arrependimento. O seu teor é arrepiar caminho. Não ser como até aqui. Não se trata de um conteúdo de facto perpetrado. Mas é-se de facto a possibilidade de o fazer. Mais tarde ou mais cedo acaba por acontecer, porque se é na possibilidade horizontal de ser isso. O arrependimento faz ver o sentido do que se tem sido. Tudo é visto como irrepetível. Agora é de uma vez por todos para todo sempre sem apelo nem agravo, sem poder ser repetido, não há hipótese nenhuma de repetir a possibilidade, de ser outro que não o que se é, de ser diferente. Nada pode ser de outra maneira.
c) Arrependimento, culpa e a possibilidade extrema do amor
Pela presença disposicional do arrependimento temos a possibilidade de compreender a culpa que temos de amortizar, a qual aparentemente, nos encerra num fechamento dessa unidade de sentido em que se veda a possibilidades do esquecimento e a fortiori do renascimento. Se o fenómeno da culpa corresponde a algo que nos tem e a nossa experiência de vida está presa do sentido dessa disposição, isso significa que estamos presos de um passado que não nos solta. Na verdade este passado não passou de todo. Trata-se de um ter-sido que é ainda, que insiste em não desaparecer, que desse modo não nos deixa abrir para um presente, e a fortiori nos cancela o futuro.
O sentido deste ser, no qual é o ter sido e o haver de ser, é dado a compreender no horizonte do que podemos fazer. Nós somos no limite aquilo de que somos capazes de fazer. O poder fazer significa o poder realizar-se pessoalmente, poder ser, exercer o dever de ser a partir do núcleo pessoal que insta à sua realização e que se cumpre e preenche, fora dos constrangimentos resistentes que não nos deixam ser, que não nos deixam opção nem espaço de manobra. O arrependimento dá a compreender disposicionalmente o que fizemos. O sentido do ser de uma determinada situação passada. Uma situação é um sucesso que transcorre no tempo. Mas o seu sentido só eclode a partir da abertura da compreensão do que se está a fazer. As consequências e os resultados do que se está a fazer são consequências do sentido do ser disso que se está a ser.
O arrependimento é sintético relativamente à culpa, embora um pareça estar analiticamente conectado com o outro. O arrependimento faz ver a culpa. Dá a entender de que modo se está a lesar o núcleo pessoal, o horizonte fundamental que delinea as possibilidades do humano. Isso para Scheler significa a possibilidade do amor, como a possibilidade extrema que realiza de modo supremo a pessoa no humano. Por isso é que a culpa significa o lesar dessa possibililadade. O arrependimento faz ver o sentido de todas aquelas situações que são criadas por nós ou nas quais caímos e que nos afastam do poder residir e insistir na possibilidade da concretização do amor.
É por ser essa a possibilidade suprema da pessoa humana e por dela nos podermos afastar ou até ir a passos largos em direcção à sua destruição que não apenas somos culpados como também podemos arrepender-nos. Nós não somos culpados apenas do isto ou aquilo concreto que fazemos aos outros e a nós mesmos; nem tão pouco é do isso que fizemos do qual nos arrependemos. O ser de cada situação culpada que se é, ou de cada coisa de que nos arrependemos, enraiza na forma da possibilidade extrema do amor e do sentido dessa realização como a realização suprema que é lesada, parcial ou totalmente, provisória ou definitavamente.
O arrependimento faz ver a partir da pessoa que em nós está lançada para o amor, a possibilidade do sentido. O arrependimento faz-nos pensar no que fizemos, faz-nos compreender o sentido do que somos, dá-nos a entender aquilo de que somos capazes. Mas quando somos capazes de abortar o amor, pelo excesso da vontade de prazer ou da vontade da ira, destruímos aquela pessoa que em nós nos pode levar a resistir em direcção à espera do que se pode ser, por aquela abertura extrema ao outro. Arrependemo-nos quando nos excentramos e afastamos do amor como possibilidade última em nós.
O arrependimento pode matar a pessoa em nós. O desvio do caminho pode ser tal que para sempre fique destruída a possibilidade do amor. E portanto o que em nós nos motiva a espera com aquela força mobilizadora da paixão por essa possibilidade. Cada momento de vida é um momento de vida que ilustra essa possibilidade seca. Os laços estreitos que nos unem aos outros afectivamente são, primeiro, afrouxados e, depois, rompidos. Ficamos num fechamento, que não nos permite estar lá completamente. E a vida toda é como se há já muito tivesse deixado de ser.
Pode também dar-se o caso de haver uma fuga para a frente, que persista na destruição completa da pessoa em nós, que ache sentido no empenho violento em afastar-se de uma possibilidade que é vista como uma ilusão transcendental. O conteúdo da culpa corresponde à realização de qualquer coisa que é à partida entendida como impossível. Ao perpetrarmos um acto, esse conteúdo é o conteúdo de uma impossibilidade que fica realizada. O humano perde a identidade total, esvazia-se de sentido, torna-se inane e assim também tudo no seu todo é vazio e inane.
A presença disposicional do desgosto é interpretada como encaminhamento para uma determinada direcção. Pelo arrependimento, há uma fuga da repetição da situação que levou à culpa. A localização da destruição dá-se na própria movimentação. De repente, há uma estagnação completa. Que torna a vida e a existência inertes.
Através do arrependimento, há um evitar da escalada de violência que assim também faz decrescer a intensidade do modo como a disposição se faz sentir. Com esta possibilidade de rejeição dessa situação intolerável rejeita-se a morte pessoal, que se constitui como impossibilidade de esperar o amor, realizar o sentido. O arrependimento dá-nos o poder de resistir ao peso intolerável em que se torna disposicionalmente presente a impossibilidade de amar, e o modo de existir numa tal compreensão de sentido. Pelo arrependimento percebe-se que se aguenta ainda mais um instante sem morrer, luta-se contra o tempo da morte, de tal modo que a todo o momento esperamos sucumbir e a cada momento renasce a esperança de que não se dê o colapso do sentido. À beira da loucura, estamos no horizonte da criação do tempo na sua dimensão pessoal. Oferece-se a resisitência que nos permite insistir ainda em vida. Faz-se a petição para que cada novo instante se constitua e também que cada novo instante seja tirado ao escondimento da sua impossiblidade, sendo que este escondimento é o futuro que poderia não se constituir e ao qual é resgatado e feito ser.
d) Renascimento
Scheler identifica um segundo momento no fenómeno de arrependimento que devemos agora passar a considerar. No fenómeno de arrependimento está dada também uma possibilidade extraordinária. Acontece aí uma tendência que parece contrariar o lance de vida que aí se esboça; que parece opor-se, de alguma maneira, por um lado, ao fechamento hermético no que se tem sido no passado; e, por outro, parece abrir-se à possibilidade de se ser de outro modo, de se estar num outro mundo, de levar uma outra vida. Todo o fenómeno de arrependimento traz consigo a possibilidade de se compreender como se pode ser de outra maneira, uma outra maneira que não abandona e desiste apenas, mas que arrepia e com isso se antolha a possibilidade de ser radicalmente diferente.
Pela presença disposicional do arrependimento, a inanidade e o vazio angustiante, presença resultante de se ser aquilo de que se é capaz, sendo-se capaz do pior de tudo, podemos compreender a culpa que sentimos na impossibilidade da sua amortização. O arrependimento fecha-nos total e absolutamente na culpa. Ficamos face a face com a imponência da vida. Não há esquecimento possível do que se fez. Nem nos podemos habituar a essa presença inóspita que tende a desalojar-nos de onde somos. O arrependimento esvazia de sentido toda e qualquer possibilidade. Torna-nos cientes do vazio e da inanidade anuladora da nossa vida.
Mas na revisão consciente de tudo isso por que passamos quando sofremos com remorsos o arrependimento pela culpa, pode haver mais do que fechamento, anulação. Podem-se reunir os esforços para se constituir uma vontade que nos faça querer ser colhidos precisamente pela compreensão daquela falta que é em nós fundamental e em que estamos. Falta que, em última análise, somos. Só esse reconhecimento nos liberta para a assunção de culpa e o acatamento de responsabilidades, que nos constitui na inanidade e falta fundamental em que estamos. Estamos em falta não apenas nem fundamentalmente quando ‘nos portamos mal’ com alguém. Isto é, podemos incorrer em falta, sem explicitamente perpetrar qualquer espécie de injustiça. Alguém pode ser lesado por nós, apenas pelo simples facto de vivermos. A existência de alguém pode tornar-se pesada pelo simples facto de a olharmos sem ver, de ignorarmos esse alguém sem querer. Pesamos-lhe na existência.
Aceitar as culpas não significa reconhecer esta ou aquela falta, em que de facto incorremos. Significa estar à altura de perceber a falta fundamental em que estamos relativamente a tudo no seu todo. Uma falta que nos torna vulneráveis e que constitui o plano de fundo total que afecta de inanidade todos os comportamentos, relações, atitudes, laços ou ligações pessoais com tudo o resto. É por estarmos em falta relativamente à vida que podemos experimentar o sentido faltoso daquelas acções, por cuja culpa somos responsáveis. Nessas alturas, lesamos o que nos pode concentrar verdadeiramente para aquelas possibilidades genuínas e autênticas em que nos podemos tornar no que somos. Uma tal aceitação não corresponde à resignação a ser da maneira que se é, resignação que desistiu da possibilidade de se ser de outra maneira, alienando-se, fugindo de responsabilidades, tendo pena de si por se ser da maneira que se é. Uma aceitação da falta em que se está corresponde a uma recondução ao sentido originário da vida que nos obriga apodicticamente a reconhecer a falta fundamental em que se é. Na aceitação de que aqui se trata, reunem-se todos os esforços para se ter a possibilidade de querer assumir a culpa, acatar a responsabilidade do que se é, pelo ser que se é, não lhe fugindo. Só é culpado de tudo quem tem o poder para o querer. Esse poder ser culpado é-nos aberto por aquele abrir de olhos que retoma o passado em que se tem sido como pronúncio de futuro.
O fenómeno de arrependimento corresponde a algo que nos tem a nós e a nossa experiência de vida está presa no sentido dessa disposição angustiante, isso significa que estamos presos de um passado que não nos deixa prosseguir, que nos ultrapassa, que se constitui no nosso futuro. Estamos assim inapelavelmente entre um futuro que não chega e um passado que não nos liberta. No intervalo fechado dessas duas dimensões temporais, encontramo-nos fechados ao presente. Por outro lado, o arrependimento traz consigo também a possibilidade de um verdadeiro amadurecimento (um amadurecimento que não corresponde a um crescimento moral) da vida. O olhar silencioso da pessoa em nós sacode-nos e assusta-nos indicando-nos o verdadeiro e oculto sentido do que estamos a fazer. Abre para a compreensão autêntica do sentido da vida que levamos, sem que habitualmente esse sentido se perfile.
Estamos à altura de poder responder com uma solução que resolve e faz uma petição. Há uma notificação da esfera do núcleo fundamental pessoal. A pessoa em nós dá-nos a entender a possibilidade de escutar uma possibilidade. Toda a angústia e medo que temos e por que estamos a passar podia não se nos ter feito sentir, tudo podia ser sem que houvesse um recolhimento, que oferecesse resistência ao modo como somos, sem qualquer possiblidade de uma revisão da vida que se leva, de uma alteração radical, de uma aproximação à fonte da vida, ao poder ser de outra maneira. Nesta possibilidade extraordinária Scheler procura reconhecer uma forma de renascimento. Parece de novo ser possível uma abertura renovada aos outros, mas os laços agora inaugurados têm um outro sentido. Pela primeira vez podemos ver os outros com laços pessoais, reconhecendo no outro a pessoa que nele acontece. Invocar a pessoa no outro como horizonte finito, limitado no mundo e na vida que são só seus é crescer-lhes à sua altura, transformá-los naquela possibilidade extrema que nos pode ligar a eles, a do amor. Ver a pessoa no outro é aceder-lhe com amor.
e) Temporalidade do arrependimento
Esta descrição de Scheler aponta para a constituição temporal do fenómeno do arrependimento, a genuína dimensão temporal em que existe a pessoa no humano. Pelo arrependimento, pende-se para o passado, ou antes como vimos, o passado impende em todos os momentos, sobrepondo-se ao presente e ao futuro. O acesso ao passado, porém, é diferente daquele que a fenomenologia de Husserl tematiza.
É certo que as análises de Husserl procuram indicar de que modo o tempo se constitui na sua espontaneidade. E de que modo ele se dá à nossa revelia, constituindo uma lucidez que ilumina em nós sem que a tenhamos criado. Assim é a retensão, ou lembrança de primeira ordem, anexada à impressão originária. O presente vivo é constituído de forma concomitante por protensão, impressão originária e retensão. Mas assim é também para a lembrança do passado, uma passado distante do tempo perceptivo que agora é vivido. No entanto, não podemos dizer que retenção e lembrança esgotam o sentido do acesso ao passado. O teor do passado aberto pelo arrependimento é absoluta e radicalmente diferente do teor do passado retido ou lembrado. O conteúdo, teor e sentido da retenção e lembrança do passado é constituido pela situação teórica que revê activamente o que se constitui sintética e passivamente. O passado do arrependimento, por outro lado, corresponde a um sentido pessoal de se ter passado, que nos hipoteca totalmente a ele. É um passado pessoalmente situado, que nos encontra. É a abertura em que estamos e não resulta de nenhum esforço de análise. É-se onde se está. Ser e compreender coincidem, são a mesma coisa. Quando se está arrependido, sabe-se o que se é. O saber o que se faz coincide com o que se é. Saber, fazer, ser, compreender são momentos que de algum modo estão presentes na situação em que se é e são articulados pelo plano total e a priori da relação pessoal com a vida. Por essa relação, sabe-se o que se faz sentir.
O tempo retido ou lembrado e as sucessivas formas de repetição do passado podem ser vistas como sendo controladas por nós. Esse acesso ao passado é interpetrado como um poder nosso, que podemos activar e desactivar quando e como quisermos. Mas o passado que situa a culpa não é acessível por um controle da situação. É absolutamente incontrolável. Com ela dá-se um descontrolo total da situação de sossego em que habitualmente nos encontramos. Ficamos sem abrigo. Há uma notificação pessoal cujo passado nos ultrapassa, sem que possamos aspirar a qualquer poder sobre ele.
O arrependimento é uma experiência de afectação da pessoa no seu ser. O conteúdo do arrependimento é algo que nos lança para um conteúdo fáctico não anulável no seu ser, mas ao mesmo tempo, percebemos que é acompanhado pela abertura da compreensão que nos permite perceber que tudo poderia ter sido diferente. Esta compreensão abre-nos a uma outra possibilidade, deixamos de viver colados às coisas, para nos deslocarmos para a dimensão que abre à vida no seu todo, na totalidade cabal e fechada do tempo do qual decorre futuro, passado e presente. Saber que tudo poderia ter sido diferente, saber que a partir de dada altura tudo será diferente, mostra aberturas para tudo, para o teor do sentido em que a vida vai passar a ser vivida, e assim também tudo o que lá se passa, todas as situações em que nos encontramos.
A situação de arrependimento faz ver a não alterabilidade do passado, a não anulabilidade do passado. Ao compreender-se que tudo poderia ser diferente, desencadeia-se uma abertura ao presente que abre a possibilidade de nos deslocarmos e seguir em frente. O teor do sentido aberto pelo arrependimento tem um futuro poder vir a ser diferente do que se foi. O arrependimento tem assim uma dimensão extáctica futura. Do mesmo modo que para a sua dimensão histórica, o futuro do arrependimento não coincide em teor, conteúdo, sentido e extensão com o futuro protensivo do tempo teórico.
2) Morte
a) O acesso ao fenómeno de morte
Concentrêmo-nos, agora, desta feita, naquela forma extrema em que a situação limite da vida humana dá mostras de si à unidade fundamental do sentido em nós, a possibilidade da morte. No volume I do espólio das obras de Max Scheler, "Acerca da Ética e da Teoria do Conhecimento", no ensaio "Morte e Sobrevivência", a morte como possibilidade é interpretada como fundante da experiência do fenómeno de resistência. Mas é no problema da identificação do modo autêntico de aceder ao seu sentido como possibilidade extrema que Scheler começa por se concentrar.
Para a focagem do genuíno isolamento do acesso àquela possibilidade simplesmente impossibilitante, começa por se contrastar as mais diversas formas de acesso a esse fenómeno. Por um lado, do ponto de vista antropológico e sociológico, é estudada a atitude ocidental e oriental ante a morte, alicerçada em pressupostos diferentes para sua compreensão. Por outro, procura-se identificar a raíz do pressuposto para a atitude do homem moderno ocidental ante a morte na filosofia moderna e no sentido da situação teórica de que parte, analizado-se para o efeito as razões para o fracasso dessa perspectiva ao deixar aquele fenómeno incólume e opaco. Finalmente, procura-se, pela notificação da morte do outro próximo, uma aproximação ainda insuficiente e extrínseca à essência e forma do fenómeno em causa, mas ainda assim capaz de esconjurar a sua característica fundamental, uma vez analisado o fenómeno da morte do outro próximo à luz da interpretação e compreensão autênticas do que aí se nos oferece a experimentar.
Detenhamo-nos, na história do pensamento ocidental, naquele momento em que se inaugura o pensamento moderno com Descartes. Desde esse momento, o homem moderno ocidental ‘deixou de morrer’, passando a viver na tensão esforçada em direcção à concretização de um ponto de vista omnisciente, omnipresente e omnipotente. Com a época da filosofia moderna celebra-se o acto originário da verdade, como sendo dado por uma percepção clara e distinta, a qual anula toda a incerteza, toda a insegurança e preocupação. O fenómeno da morte, entendido como possibilidade impossibilitante, tinha de, por isso, ser tornado, pura e simplesmente, opaco.
O ponto de vista da filosofia moderna manifesta-se numa tendência para um fechamento do olhar para este fenómeno, erradicando-o da vida, correspondendo, de alguma maneira, à posição pragmática do entendimento comum, inclinado a ignorar a morte. Como a morte é um fenómeno que escapa á evidência da percepção clara e distinta, promovida à única forma de acesso genuíno à verdade, fica afectado de neutralidade. Nem a percepção clara e distinta evidencia a morte nem o entendimento comum a compreende.
Mas também na experiência da morte do outro, o acesso à morte está a anos luz e dista o abismo daquele acesso que procuramos esconjurar. Com a morte do outro dá-se a compreensão da impossibilidade da vida do outro. O que sucede com a morte do outro que nos está próximo é a dissociação do plano em que essa pessoa vivia, com o carácter de possibilidade, daquilo no qual alguém ainda se podia tornar e o plano a que esse alguém está agora inapelavelmente, o do mero facto, do que foi, do já ter sido, já não estar entre nós. Com a morte do outro experimenta-se a circunscrição hermeticamente fechada à possibilidade de um horizonte de tempo de que o outro já não dispõe, sendo que esse fechamento é diferente daquele que se experimenta quando há uma separação. O isolamento é agora definitivo.
Como podemos, então, deslocar o sentido da morte do outro próximo de nós para o sentido da nossa morte? As próprias reacções que se vivenciam quando o outro morre não são indicações de que vejamos a morte ante os nossos olhos. A experiência da morte não é dada por indução, pelo facto estatístico resultado do confronto diário com a morte dos outros, noticiada, ou comunicada de qualquer outra forma. A experiência da morte é a experiência do ser a morrer, sendo o ser a morrer o apriori constitutivo de toda a forma de ser que há. É passar por essa experiência que se pretende. Apenas essa prova constitui uma mudança convulsiva no olhar sobre a morte como a minha morte, promovendo um recolhimento e uma concentração sobre aquele núcleo de sentido fundamental que diz respeito à minha pessoa.
A morte é o a priori da vida. É o que actua desde sempre eficazmente sobre todo e qualquer instante da nossa vida, o sentido que perpassa através de todos os momentos de vida. A sua eficácia advém do futuro. No cansaço, no enfraquecimento, na doença, no sonho, no adormecimento, no envelhecimento há um excesso de sentido avistado para lá desses meros acontecimentos. Nestes fenómenos aparentemente antroplógicos, biológicos ou apenas zoológicos encontramos uma indicação de um tipo de vivência que corresponde a um modo de decadência.
Em qualquer destas perspectivas subsiste uma ingenuidade consituída em posição inamovível. O ponto de vista que a filosofia moderna inaugura subjuga-se à ditadura do instante e à lógica do seu sentido temporal. A qualidade temporal do instante que a filosofia moderna privilegia é o da intuição, ou seja, aquela característica que traz uma evidência clara e distinta à presença aberta do presente vivo que dá e se dá a ver numa coincidência absoluta. O que é evidenciado pela percepção clara e distinta é tornado evidenciado num instante, mas pode dilatar-se até ao infinito. De cada vez que se abre um estado de coisas à perceptio clara et distincta, poder-se-ia dizer que o que é agora dado a ver será para sempre. O agora poderia transforma-se num nunc stans. Por mais breve ou dilatado que seja o instante, trata-se sempre de uma temporalidade sem passado e sem futuro. Eternidade e instante presente coincidem num mesmo sentido. A sua diferença é apenas de quantidade. Instante e eternidade são modalidades da presença presente, agora ou sempre.
A experiência autêntica do fenómeno da morte é feita abrindo-nos à compreensão do sentido da temporalidade pessoal como encaminhamento para aquela possibilidade extrema que tudo impossibilita, que fecha a situação de vida. A possibilidade de confronto com a morte é dada pela possibilidade de acolhimento da temporalidade pessoal como um estar a morrer. Experimentar a morte como o estar a morrer e ser a morrer significa ao mesmo tempo, de acordo com os nossos apuramentos, experimentar a resistência limite que se pode oferecer. Em toda a adversidade, em toda a contrariedade, em toda a experiência de resistência avista-se o ser da pessoa como um ser a morrer. É a abertura a este sentido que funda pessoalmente na sua concretude e autenticidade a compreensão dos fenómenos da fenomenologia como fenómenos de resistência. Todos eles passam a estar à vista, numa integração total e radical no horizonte fechado que desde todo sempre de cada vez nos tem, o horizonte em que se está a morrer. Cada instante de vida e não apenas aquele que tem essa qualificação stricto sensu é, assim, uma resistência que se oferece, uma insistência da existência que persiste e resgata a cada instante a vida da morte, que adia e prorroga o dia já contado.
É esta ideia do ser da vida que está na base da analítica pessoal de Scheler. É esta ideia da vida que permite operar uma genealogia da morte. A morte entendida como possibilidade simplesmente impossibilitante deixa de ser entendida como o além, para lá da dobra do derradeiro instante da nossa vida. Esta compreensão da morte como possibilidade modifica a predominância do sentido do tempo objectivo. Um tempo que constitui realidades umas a seguir às outras, que as mantém em durações de presença umas menos permanentes do que outras, todas elas tão extendidas como um instante e destacadas de todo o tempo da eternidade. Um tempo que faz do instante mortal o momento para lá da dobra da vida, mas objectivável. A hora da nossa morte. Um tempo que data ainda uma realidade acontecida num determinado instante.
Ao retirar o ser a morrer do seu anonimato, ao aceder à compreensão da morte como possibilidade iminente do simplesmente impossibilitante, passa a perceber-se a morte como um a priori e, na verdade, como o a priori. O sentido da estrutura originária onde a unidade pessoal de sentido se enraíza inexoravelmente. Inexonerável. Ser a morrer é ir ao encontro da possibilidade que impossibilita assim, sem mais, tudo no seu todo.
Destruída fica a tese da evidência do cogito, fundada na possibilidade que neutraliza a dinâmica do tempo como instante, mesmo tomado como a finitude da eternidade.
Expostos a esta experiência deixamos de ter o tempo no seu incremento em direcção ao infinito indefinido da eternidade, de um presente que se dilata e expande por todo o sempre. Abarcados por este tempo, passamos a ter a experiência da passagem do caudal do tempo. O tempo é vivido numa resistência ao seu esvair-se, um escoamento de cada vez mais e mais precipitado, que jorra de cada vez com mais força. A dimensão do ter sido engrossa mais e mais o seu caudal e a dimensão do haver para ser é de cada vez mais ténue e adelgaçada. Vivida no seu estrangulamento. Esse esvaimento faz ver o sentido do tempo na sua origem. O que é sido incrementa-se com o que pôde ser, com o que podia ter sido, cancelando possibilidades atrás de possibilidades, enquanto que ao mesmo tempo o horizonte futuro é onde há cada vez menos e menos possibilidades, possibilidades que de cada vez se obliteram e invalidam. O haver de ser chega de cada vez menos frequentemente. Rareia.
A tese de Scheler não inverte apenas a lógica habitual da equipotência das duas dimensões temporais do passado e do futuro, ambas de algum modo vistas à luz do presente. Um passado que já não se apresenta e um futuro que ainda não veio a uma apresentação. Mesmo que compreendamos o horizonte do passado a alargar-se e o do futuro, ao mesmo tempo, a estreitar-se, ficaria sempre por se perceber como é que essa experiência é feita desde todo o sempre, desde que começámos a ser. A inversão da lógica do sentido do tempo passa pela destruição da ilusão aparente de que há apenas contemporaneidade, coexistência e permanência de presenças.
A inversão é feita no sentido de experimentar o ser a morrer, como o sentido fundante da lógica do sentido do ser do tempo pessoal, expandindo-se e alastrando a tudo, que passa agora a ver perpassado no seu todo. O que é invertido é a ordo et connexio momentorum. Em vez de fazer a seriação passado, presente, futuro a transforma em futuro, presente, passado. Invertido é também o estatuto modal do tempo. Em vez da modalidade da realidade como a categoria fundamental do tempo, obtida pela lógica da presença, que se impõe de cada vez, expulando as outras dimensões, despendindo-as como irrealidades, ainda não -ou então já não- presentes, o tempo passa a ser compreendido pela lógica categorial da possibilidade, e da possibilidade iminente simplesmente impossibilitante.
Ou seja, a síntese de momentos temporais não é interpretada como a síntese associativa de agora em agora, mas antes é fundada num sentido de encaminhamento e de passagem cuja origem é o futuro da possibilidade impossibilitante, relativamente à qual o presente é um acontecimento de aparente imobilidade, de aparente estagnação. Assim, anula-se a sua característa neutralizadora, inserindo o presente na situação de proveniênica. Também o presente é possibilidade, mas possibilidade provinda de um futuro, que foi invalidado e obliterado.
Mesmo que se dê o caso de não sermos notificados por nenhuma das formas primeiramente consideradas como possibilidades de acesso fenoménicas, mesmo que se desse o caso de, por exemplo, alguém ter vivido isolado, sem conhecer ninguém, se nunca tivesse acesso ao envelhecimento do corpo, se nunca se enfraquecesse, mesmo assim, teria a compreensão do modo como é, a morrer a cada instante. Mais ainda, mesmo que vivessemos durante a eternidade, teríamos uma experiência de morte. Experimentamos o tempo através do carácter fundamental da passagem do tempo. O tempo passa. É no modo como cada instante sintetiza cada outro instante na medida da passagem dos momentos que atravessamos que todo o tempo da eternidade poderia ser um tempo de morte. O acesso a esse sentido é dado pela compreensão de um apriori. A vida insiste e oferece resistência a esse modo fundamental de se ser a morrer.
Dá-se uma experiência convulsiva de verdade. A vida perdida e abandonada do outro é reluzida pela ausência definitiva. Alguém é visto quando se foi.
b) Tempo de morte
Pelos apuramentos, podemos ver que o agora pessoal se constitui na diferença radical relativamente ao agora da sequência infinita, a qual liga cada agora a todo o novo agora que se constitua. Do contraste do sentido do agora pessoal com o do agora objectivo resulta compreensível a tese de Scheler, que a morte é o a priori da vida. A morte como o a priori constitui-se como o fundamento da base fenomenal da experiência fundamental de resistência. O campo aparentemente aberto da vida que corre sem fim, resvalando de agora em agora, fecha-se. Implode. Agora sente-se a corrente no seu afluxo do futuro fechado, num escoamento que faz sentir cada momento agora vivido no seu esgotamento. A experiência da vida é a experiência de resistência. Sente-se agora a sua insistência em resgatar cada novo instante ao campo fechado do futuro. Na iminência do colapso, cai de cada vez um novo agora que não nos deixa sucumbir. Cada agora é visto como o acto que é levado e trazido por um agir e por uma movimentação entendidos como as operações fundamentais da vida. O agora é entendido sob um plano de fundo total, a unidade de sentido pessoal. O ser do agora é o sentido da conexão de vida cujo sentido é ser a morrer.
Se habitualmente cada "agora" é entendido como repetível e repetível por ser oriundo de uma fonte inesgotável que faz jorrar a cada instante sempre um novo agora, se esse agora é o tempo objectivável e destacável da totalidade da série infinita de agoras, o tempo natural e o tempo público (este agora objectivo é um tempo que é património de tudo e que tem em si agoras repetíveis e é repetível para todo o sempre), dá-se agora uma inversão convulsiva deste estado de coisas alicerçada numa radicalmente nova compreensão do ser do agora. A inversão da direcção do sentido do tempo operada pela compreensão da tese que a morte é o a priori, faz que haja uma integração de cada agora numa unidade de sentido pessoal. Cada agora é um agora para mim. Cada agora é um agora meu. E cada conteúdo do mundo é perspectivado em absoluto por esse meu agora de tal maneira que eu sou esse agora e esse mundo, diferente de todos os outros momentos agora acontecidos a cada outro ser pessoal, diverso também de todos os outros mundos agora vividos por esses seres pessoais. Mas esse agora é irrepetível, indivualizado, isolado, impermeável. Agora é sempre uma só vez para todo o sempre, sem regresso. Cada novo agora é sempre sem regresso. Não volta nunca mais.
c) Tempo objectivo e tempo pessoal de resistência
Mesmo que nós fôssemos eternos, teríamos uma experiência de morte. Experimentaríamos o tempo sempre como tempo que passa, mesmo que se estivesse sempre na queda precipitada para um abismo que nunca mais é atingido. O agora integrado nesse a priori não pode ser entendido como o agora objectivo, repetível e repetível, na verdade, para todo sempre. Mas mesmo o comportamento teórico, mantido para com o agora, identifica uma estrutura distendida, isto é, uma estrutura que, por mais ínfima e reduzida que seja, não é nunca atómica. Admite, antes, sempre ser cindida em subdivisões também elas susceptíveis de sempre novas cisões, sem que se consiga alguma vez isolar, verdadeiramente, um agora não hipostasiado, não estático, não pontual.
O agora é uma franja que tem mesmo agora uma retensão do passado imediato há pouco e se conecta com uma protensão do futuro imediato daqui a nada. Todo e qualquer agora é sempre ao mesmo tempo agora há pouco e agora daqui a nada. Cada agora é, por assim dizer, trazido em puxões, que o arrastam do futuro para o presente, do presente para o passado que de cada vez é mais, e mais, remoto até ser arrastado para as águas fundas do passado e cair nas profundezas do esquecimento. O agora é por isso um agora sempre visto em conexão, sempre motivado por uma lógica de constituição mais abrangente, que o traz e que o leva. Tal como nós, também os agoras são de cada vez levados a passar. Este é o sentido do agente fenomenológico do tempo. Um agente que a cada instante actua, por acções temporais. O seu sentido é ser levado. Contudo, não se avista nunca o plano agencial. Está-se sempre de cada vez a ser levado e toda a detecção levada a cabo está sempre já trazida, sempre a ser levada, sem que coincida com o plano onde se encontra o centro operacional.
O tempo objectivo é constituído na medida em que o sentido do ser do tempo corresponde à neutralização da conexão que sintetiza cada agora com cada outro agora, numa lógica de sequência, sequência essa que se pretende esteja sempre em acção. Tudo se passa como se estivessemos sempre a viver num rejuvenescimento eterno, substituíndo momentos presentes por outros momentos presentes de igual valência, como se verdadeiramente vivessemos apenas num presente sem passado nem futuro. Nós percebemos os conteúdos, acompanhando-os, como se estivessemos a ‘nadar’ com eles, e, por isso também, criamos a ilusão de estar, de algum modo de fora, a vê-los a fluir, estando nós numa qualquer margem, sem sermos banhados ou arrastados por eles. Esses conteúdos temporais dão-nos a ideia de estar parados ou, então, activos apenas durante o momento em que nos comportamos teoricamente relativamente a eles.
Mas na inserção dos momentos temporais numa motivação de fluxo, vendo-nos a nós de fora na margem da vida ou a fluir com eles, poderemos nós compreender que também estamos imersos num fluxo que a cada instante esgota momentos que não retornam? Que inexoravelmente agora é para sempre e nunca mais volta? Poderemos nós perceber não apenas não estarmos no tempo, mas sermos o tempo desse a priori? Poderemos nós perceber que não há substituição nenhuma? Pela velocidade a que os agoras tombam, esse presente parece eterno, inaparente na sua mobilidade. E essa aparente imobilidade dá a mesma consistência de ser à totalidade do mundo que serve de plano de fundo a toda a mobilidade, mas que no fundo é vista como excepção à regra.
A verdade é que os conteúdos temporais e a fortiori tudo quanto é, perspectivado à luz do a priori fundamental da morte pessoal, estão em fuga. O agora de há pouco é irrecuperável, não porque não haja a capacidade cognitiva de recuperar o seu conteúdo e mesmo recuperá-lo de uma forma mais viva do que quando fora vivido em precepção. Ele é irrecuperável porque se sabe apodicticamente que não regressa. E este saber é um saber a priori formal e universal válido para todo e qualquer conteúdo, para todo e qualquer agora.
d) Tempo de resistência
A análise de Scheler centra-se como vimos nos momentos de dobra temporal, naqueles momentos em que o acontecimento é ainda de expectativa, mas cuja permanência em expectativa está numa tensão para o vazio, insiste na resistência da espera. Essa resistência não conta com a constituição do que existe para lá da dobra, com a possibilidade do instante seguinte chegar ou não; mesmo que se sobreviva a diversas situações de resistência. A qualidade deste instante corresponde à autenticação do seu sentido. A resistência é o sentido fundamental de uma existência e modo de ser que a cada instante pode sucumbir à possibilidade absoluta e simplesmente anuladora de toda e qualquer forma de comportamento relativamente ao que quer que seja. Os fenómenos de morte e arrependimento constituem assim a base ôntica para a abertura à dimensão da pessoa no humano, embora fique por saber se é esse o horizonte de sentido em que eles podem ser interrogados verdadeiramente. Mas esse problema cai fora do âmbito deste artigo.
A tese de Scheler sobre a morte conduz à ideia da totalidade fechada que serve como plano de fundo a toda a forma de acesso pessoal, que transforma os fenómenos em casos e acasos pessoais. O plano de fundo à vida no seu todo, em que decorre a existência e o ser pessoal, tem o sentido, como vimos, o facto do encaminhamento da vida como ser a morrer. Assim, todo e qualquer momento não é apenas uma sequência de agoras englobados por durações mais e mais extensas, mas antes é um momento de tempo que atravessamos para nunca mais. Quando se fala em atravessar momentos de tempo evoca-se o carácter de fuga e não repetibilidade do tempo em curso. Cada momento é, então, um momento que força à crise, que nos pode notificar do fechamento da dimensão pessoal na dimensão pessoal da finitude. Cada momento oferece resistência à opacidade absoluta em que mergulha a possibilidade simples de daqui a nada tudo deixar de ser, de tudo deixar de ser, assim, sem mais nem menos.
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