A solicitude inautêntica radicalizada
Para o meu irmão, Pedro, o único. Ele sabe.
Procurando isolar os fenómenos disposicionais, portanto, a presença mais radical do outro enquanto atmosfera, é possível experimentar o acesso ao outro, mas numa solicitude ainda inautêntica.
Queremos extremar a análise até ao nível limite da intolerância de preocupação, de uma preocupação com o outro, mas ainda, de todo em todo, inautêntica.
É possível radicalizar a distorção com que o outro nos surge à luz de uma preocupação com ele. O outro pode afectar-nos de tal maneira, atingir-nos de tal modo que, como dizemos em português: “ficamos completamente ralados”, “apoquentados”, com os nervos em franja. O outro deixa-nos num estado de tal passividade e controlados que apenas experimentamos uma impotência e incapacidade insuportáveis.
O paradoxal desta situação específica de presença do outro é que ela acontece por AUSÊNCIA do outro, quando, por exemplo, o seu paradeiro é desconhecido.
O paradeiro desconhecido do outro invade-nos totalmente a vida.
Mas esta ausência é uma presença lancinante na nossa existência. É possível, ainda assim, a despeito de toda a solicitude, da interpelação maciça e total de mim pela ausência do outro, que uma tal solicitude seja também inautêntica.
As ausências do outro, as suas saídas para fora da esfera familiar e sossegada, podem originar situações absolutamente aflitivas e alarmantes. Quando o outro está em parte incerta, a sua PRAESENTIA IN ABSENTIA, faz-nos ver o sentido da sua vida na nossa.
Esse outro tal como na solicitude de primeira ordem é uma vez mais um dos meus. Preocupa-me e aflige-me, porque lhe quero bem. Eu quero o seu bem. E, contudo, posso ser apenas eu que ali estou em causa: a querer a serenidade e a tranquilidade perturbadas por ele, a querer de novo obter sossego e não estar na incompreensão do por que o outro assim procede.
Consideremos a seguinte situação: hoje à noite, X vem lá jantar a casa.
O dia começa. E ao pequeno almoço vem-nos à lembrança: “X vem cá hoje jantar a casa”. A ocorrência desaparece tão depressa como vem, como um lembrete espontâneo. A manhã decorre sem que pense nisso. Há ainda tanto tempo! As compras estão feitas. Tudo está já preparado.
A manhã passa normalmente como de costume.
Ao almoço, porém, de novo, o lembrete espontâneo: “X vem cá jantar hoje a casa”.
Depois do almoço, o começo da tarde e a tarde passam sem nada de anormal no decurso das tarefas.
A partir das seis e meia assalta-nos à laia musical a frase: “X vem para jantar”. Ela é agora interpretada como notificação, um aviso, mais pregnante do que os outros. Mas surge-nos ainda de um modo, mais ou menos, imperturbável. Assim como vem, vai. E continuamos a ler, a ouvir música, ou então voltamos a concentrar-nos e a prestar atenção no que estávamos a fazer.
Passada uma hora, irrompe o lembrete já com alarme. São horas de ir preparar o jantar: “X daí a nada está aí”.
Começa a preparação do jantar, põe-se a mesa. E tudo está preparado. Ficamos então num compasso de espera. Tudo está a decorrer normalmente, o jantar está a preparar-se. Ainda é cedo para o outro ter chegado e procuramos preencher o tempo.
Fazemos coisas que requeiram pouca atenção. Fazêmo-las, contudo, para ‘podermos’ esperar.
Liga-se a Televisão ou ouve-se rádio. Mergulha-se na leitura de uma última página. Arruma-se uma peça de roupa. No decorrer de todas estas tarefas, passa meia hora. O que hora e meia antes era uma frase mais ou menos anódina, passa agora a prender-nos a atenção de uma outra maneira. “X vem jantar” transforma-se em “X está aí a rebentar”. Já só esperamos pelo outro sem conseguirmos ler com a devida concentração.
A vinda iminente do outro, não nos deixa livres para ler, nem ouvir música.
Ficamos então de pé a ver um pouco de TV. Não nos sentamos, porque não vale a pena. Daqui a nada, X está aí. Desvia-se-nos a atenção do que está a ser dito. Não nos concentramos no concurso que está a ser emitido. Fazemos “zapping” por todos os canais. E, de repente, são horas do noticiário.
Agora, X já devia ter vindo.
A partir desse momento, passamos a virar-nos para o momento iminente quando X chegar. X já devia ter chegado. X está atrasado. Nós completamente virados para o momento futuro quando finalmente chegar.
Não conseguimos prestar atenção ao noticiário. Não conseguimos ouvir a música que passa na rádio na sala contígua. Não conseguimos ler. Todas as tarefas que estávamos a executar são inexequíveis.
Sobrepõe-se apenas o conteúdo futuro possível de quando o outro chegar.
Mas quando é que X chega?
A espera na expectativa está misturada com alguma perplexidade. Eu não consigo estar em lado nenhum da casa. Não consigo ler, nem ouvir música, nem prestar atenção às notícias. Ando de um lado para o outro. Vou à janela, ver se X vem. E nada.
O telejornal acaba e agora sim. Disparam os níveis de ansiedade. O que é que terá acontecido?
Tentamos contactá-lo por TM, mas X tem-no desligado. Agora perguntamos: o que é que X anda a fazer? Por onde anda? Passa a expandir-se a percepção acústica para ver se se detecta o carro dele lá ao fundo da rua. Ouve-se a porta de entrada do prédio. O elevedor é chamado ao rés do chão. Sobe ao primeiro andar, ao segundo, ao terceiro, ao quarto, ao quinto, ao sexto onde vivo. Mas não pára. Continua a subir.
Ainda não é X.
E vem o pânico.
O que é que terá acontecido? Onde está X? O que é que X anda a fazer. “Uma hora de atraso e eu sem saber nada.”
De novo o motor de um carro da marca do seu lá ao fundo, mas passa a alta velocidade. Não é ele. A perturbação é tal que todos os conteúdos mais próximos ficam riscados. Eu fico fora de sítio. Já não vejo nada. Eu não estou no princípio da avenida, para onde olho a ver se o vejo X. Eu estou no patamar das escadas lá ao fundo, a prestar atenção ao elevador. Sem sair de casa, os conteúdos dela não desaparecem. Contudo, eu não estou com eles. Eu não estou dentro de casa. Eu expludo de preocupação por todos os sítios possíveis e imaginários onde o outro possa estar.
Eu estou fora de mim. Passo a estar precisamente onde não estou.
Ao andar de um lado para o outro, vejo uma parede a aumentar, à medida que dela me aproximo. Ao virar-me, vejo a outra lá ao fundo que também aumenta. Passo a ficar num estado de nervos descontrolado.
E ouvimos uma ambulância passar lá ao fundo. Agora tudo pode ter acontecido. Já são nove e meia. É muito tempo. O pânico instala-se.
E eu estou dilacerado, espalhado por todos os sítios possíveis e imaginários onde ele possa estar. Deve ter acontecido alguma coisa de grave. Penso ligar para os hospitais. Fico deposto em todos os sítios da cidade de Lisboa onde X pode esta. “O que quer que lhe tenha acontecido, não é nada de bom”.
O espaço é o paradeiro desconhecido e indeterminado no qual eu me metamorfoseio, quase que abandonando o sítio onde habitualmente me encontro. O tempo, o da iminência sempre de cada vez gorada de quando o outro vai chegar. No limite nunca mais vem.
Naquela meia hora que já passou o outro está nenhures, quando vem é nunca. Tenho apenas o negativo, a possibilidade desse outrem não aparecer nunca mais. Passo a ser tomado pela presença do outro que me domina, invade tudo.
Passo a viver na crista da onda temporal do “estar prestes a…, mas ainda não”. Sou obrigado a ser nesse limite. Nele, erigem-se sempre novas possibilidades para serem frustradas.
Passo a ser confundido com aquele horizonte em que transporto o mundo inteiro na agonia, na asfixia do estrangulamento da angústia.
O outro é simplesmente preocupante.
A experiência é a da impotência. Mas, no limite, não será a ‘minha’ preocupação completamente inautêntica? Eu quero estar sossegado. Quero poder contar com o ‘meu’ tempo. No limite, quero-me devolvido a mim e voltar a estar comigo.
No fundo, “não posso viver a vida do outro”. E ainda assim parece estar a ser obrigado a fazê-lo.
Quero saber onde está X. Quero controlar o quando e o onde.
Este cuidar doutrem é visto como preocupação com alguém de quem gostamos tanto. Mas pode ser o gérmen da inautenticidade. É que habitualmente eu controlo
quando o quero ver. E ainda assim, eu percebo que não controlo o paradeiro de ninguém nem com quem está nem o que está a fazer.
Habitualmente, não nos percebemos totalmente vulneráveis ao outro, porque “o mais das vezes” o outro está ausente e a interpretação dessa ausência não angustia. Está, antes, neutralizada.
Nós deixamo-lo ser, estar em sossego, fazer e ter a sua vida, mas em determinadas situações queríamos que o outro fizesse a nossa vontade, nos deixasse saber do seu seu paradeiro, fosse controlado por nós, mesmo que não dêmos conta disso.
Caeiro, A. de C., "O acesso a outrem como 'si' no seu 'aí'" in Didaskalia, (2008), I, pp. 227-256.
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