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Epístola aos Romanos
A ΔΟΥΛΕΙΑ como característica inanulável da “humana
Condicio” e a possibilidade de uma liberdade radical.
António de Castro Caeiro
(Lido a 13 de Abril de 2009 na Igreja de Santa Isabel.)
I.1. Introdução
Encontramos na Carta aos Romanos um remetente cuidadosamente
caracterizado: Paulo servo de Jesus, Παῦλος δοῦλος Χριστοῦ, chamado como
embaixador e enviado, κλητὸς πόστολος, apontado de forma distinta para o
cargo, φωρισμένος, de dar a boa nova de Deus, εἰς εὐαγγέλιον θεοῦ. O
conteúdo da Epístola é introduzido medias in res:— o evangelho de Deus, a
boa nova, como promessa da salvação, o seu anúncio, e a possibilidade de
nos habilitarmos, todos nós, primeiro o Judeu, depois o Grego, como seus
herdeiros. O anúncio é feito directamente por Deus, mas
1, 2-4: “tinha já sido prometido por meio dos seus profetas, nas
santas Escrituras, acerca do seu Filho, nascido da descendência de
David, segundo a carne, tendo sido determinado filho de Deus,
ὀρισθέντος υἰοῦ θεοῦ, no poder do Espírito santificador pela
ressurreição de entre os mortos, ἐν δύναμει κατὰ πνεῦμα ἁγιωσύνης ἐξ
ἀναστάσεως νεκρῶν, Jesus Cristo Senhor nosso”.
Sabemos que a nomeação para o cargo resulta de uma acção de graça, e é
também assim que o cargo é aceite por Paulo. Os destinatários da
mensagem, não são os Romanos em exclusivo, mas todos os povos sem
excepção, τὰ πάντα ἔθνη. A boa nova de que se dá notícia: a possibilidade
radical de recuperar-se a si do coma profundo da morte, implica um
encaminhamento peculiar, uma preparação da sua recepção, uma
disponibilidade total para uma conformação a essa realidade. De algum
modo, ter-se-á de ficar virado para ela.
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I.2. ῾Υπακοὴ πίστεως
É do modo como se elabora essa possibilidade e se trabalham as suas
condições de que a Epístola aos Romanos dá conta. Mas a possibilidade de
uma total conformação à mensagem e de a nossa vida ficar configurada por
ela implica uma viragem catastrófica do quadro geral de sentido em que
habitualmente nos encontramos. A emersão total das profundezas do abismo
da morte até à superfície da vida implica entender o sentido da fé: ὑπακοὴ
πίστεως.
A tradução da fórmula grega de Paulo é traduzida por obediência à fé. Mas
traduzir ὑπακοή por obediência apenas faz sentido se percebermos o seu
étimo latino: ir ao encontro do que se ouve ou escutar o que nos está a ser
dito: “Oboedientia” com a mesma raiz do verbo “oboedio, oboedire, oboedivi,
Oboeditus”: ouvir, escutar, entender, compreender. Quer dizer, o sentido de
obediência presente no substantivo ὑπακοή não se esgota no cumprimento de
uma ordem à voz de comando: na execução de uma tarefa atribuída, no fazer
o que nos mandam. Além disso, o domínio da fé é total. Ou seja, configura
todos os conteúdos da nossa vida do primeiro instante do primeiro dia de
tudo na vida até à hora da nossa morte. Converte tudo, mas mesmo tudo,
num conteúdo cujo sentido é projectado pela vontade de Deus. Cada um de
nós seria a expressão dessa vontade por ter escutado, ouvido, entendido,
compreendido e finalmente sido o cumprimento de si. Cf. Mt. 4, 19-20:
δεῦτε ὀπίσω μου…, οἱ δὲ εὐθέως φεντες τὰ δίκτυα ἠκολούθησαν αὐτῷ.
II. Perplexidades
Mas basta um segundo olhar, ainda que breve, para nos deixar perplexos. O
remetente faz escrever o seu nome de baptismo, Paulo. A segunda
palavra faz, porém, espécie: escravo ou servo, δοῦλος. Qualquer que seja a palavra
escolhida para a tradução ter-se-á sempre que sublinhar a natureza específica
desta condição: escravidão: δουλεία. Pois, com efeito, o idioma grego conhece outra
palavra para servo ou escravo: ἀνδραποδώδης e para essa condição,
ἀνδραποδωδία.
Há quem tenha nascido livre e sido feito escravo. Mas Paulo
diz que a sua condição é a de ter nascido escravo na servidão. Isto é, quem
foi escravizado poderá ser emancipado. Quem nasce escravo na servidão não
poderá nunca ferir de nulidade essa sua condição.
Mas não sonhará o servo e o escravo com a liberdade e até mesmo nos seus
sonhos mais selvagens em tornar-se dono e senhor?
É nisto mesmo que reside a brutalidade da denúncia da “humana condicio”: nenhum homem é livre. Todos nós nascemos em termos e sob a dependência exclusiva de uma
condição absolutamente inexorável. Nascemos já desde sempre nesta
condição: escravos de uma servidão.
A Epístola aos Romanos trata de uma metamorfose de reconfiguração da
servidão humana. Ou antes, do recuo de compreensão que dá a única
possibilidade altamente improvável e até mesmo impossível: a de querer a
vida, não apesar de [concessiva], mas por causa dessa [causal] condição. Isto
é, desde sempre já nos encontramos numa condição servil: sem autoridade,
sem vontade própria, sem um querer que não seja de outrem.
A diferença reside em restituir ou não o poder a quem verdadeiramente o domina, pois
pode acontecer que obedeçamos às ordens de um USURPADOR. E é precisamente aqui que reside a abertura que possibilita a mudança: na suspeita de estarmos a servir um usurpador e não quem emitiu o nosso “habeas corpus”.
Mas a origem da mudança está no que o “pendurado do madeiro” nos revela.
A instante metamorfose, a radical catástrofe do olhar que resulta do derrame
aluvial da graça, que tudo inunda, alaga, mas também tudo simplesmente
transforma é uma μετάνοια, uma transformação do modo de tudo
compreender e, assim, consequentemente, uma mudança do modo de ser. A
vontade de Deus e as nossas seriam unânimes, uníssonas. Coincidentes.
Apenas, por isso, é que Paulo já não é quem era. É outra pessoa com outro
nome e, porém: reclama a mesma condição: servidão humana, mas agora
com a missão específica de transmissor do sentido que lhe é comunicado.
III
O conteúdo da Epístola é resumido em 1, 16-17: O evangelho é o poder de Deus para a salvação (εἰς σωτηρίαν) de todo o crente, primeiro o judeu e depois o grego. Pois nele se revela a justiça de Deus (δικαιοσύνη θεοῦ, genitivo subjectivo) a partir da origem da fé (genitivo de origem construído com ἐκ e um quase agente da passiva), em direcção à fé (εἰς πίστιν), tal como está escrito:
“o justo viverá a partir da origem da fé.” Τὸ εὐαγγέλιον, δύναμις γὰρ θεοῦ ἐστιν εἰς σωτηρίαν παντὶ τῷ πιστεύοντι, Ἰουδαίῳ τε πρῶτον καὶ Ἕλληνι. δικαιοσύνη γὰρ θεοῦ ἐν αὐτῷ ποκαλύπτεται ἐκ πίστεως εἰς πίστιν, καθὼς γέγραπται· ὁ δὲ δίκαιος ἐκ πίστεως ζήσεται.
A apresentação da possibilidade positiva, dada por obra e graça da revelação
é feita para logo ficar suspensa. Paulo prossegue, antes, com a consideração
do quadro exactamente contrário, na verdade, contraditório de uma vida
perdida no meio da impiedade, da injustiça, de repressão e retenção da
verdade. Ou seja, procede através de uma “reductio ad absurdum” que
considera a possibilidade contrária da impossibilidade da salvação e da
necessidade da perdição e condenação.
E, contudo, mesmo no meio da impiedade e da injustiça, no estrangulamento da verdade, Deus revela-se soltando a fúria da sua ira com que se faz abater do céu contra os homens. (1,18: ἀποκαλύπτεται γὰρ ὀργὴ θεοῦ ἀπ’ οὐρανοῦ ἐπὶ πᾶσαν ἀσέβειαν καὶ ἀδικίαν ἀνθρώπων τῶν τὴν ἀλήθειαν ἐν ἀδικίᾳ κατεχόντων.)
Com efeito, a ira de Deus revela-se, abatendo-se do Céu sobre toda a impiedade e injustiça dos homens que retêm a verdade na injustiça. A ὀργή é a disposição com que Deus vibra a sua presença, a fúria da ira. O esvaziamento de sentido faz-se sentir no tempo insólito da asfixia e do estrangulamento e ainda assim trata-se da Sua comparência. Na possibilidade mais aviltante em que a nossa vida em todos os seus
pensamentos, palavras actos e omissões deixou apenas um rasto de destruição, de impiedade e injustiça, na possibilidade impossível, Deus revela-se in extremis.
Ap. 9. 5-6: “Nesses dias, os homens procurarão a morte, mas não a
encontrarão: desejarão morrer, mas a morte fugirá deles.”
É assim que os homens sabem como é que com eles e o que fizeram das suas
vidas (19a: διότι τὸ γνωστὸν τοῦ θεοῦ φανερόν ἐστιν ἐν αὐτοῖς). Isto é, o acesso de fúria interdita, proíbe, rejeita, e nega convulsivamente, o que se fez da vida. Mas é, ainda assim, que Deus se manifesta (19b: ὁ θεὸς γὰρ αὐτοῖς (ἡμῖν, ἐμοῖ) ἐφανέρωσεν). É relativamente à ambiguidade da presença da ira que pode ser interpretada como provinda de Deus ou simplesmente como o conteúdo gratuito de sofrimento, desespero e angústia sem qualquer sentido que se sente o “ultimatum”: Ou ficar para sempre condenado a servir o usurpador ou o Senhor da vida.
Mas numa situação irresolúvel estão todos os que (1, 21:) tendo reconhecido a presença de Deus (γνόντες τὸν θεὸν) não o glorificaram como Deus (οὐχ ὡς θεὸν ἐδόξασαν) no esplendor da sua glória nem lhe deram boas graças (ηὐχαρίστησαν), mas ficaram completamente esvaziados com o total obscurecimento do seu coração incapaz de compreender (ἀλλ’ ἐματαιώθησαν καὶ ἐσκοτίσθη ἡ σύνετος αὐτῶν καρδία).
A impiedade e a injustiça ou a injustificação são as características que
resultam de pensamentos, palavras, actos e omissões, isto é, de um conteúdo
total de uma vida cujo projecto está alicerçado num desejo de mundo. Numa
ἐπιθυμία. A tradição latina traduz a palavra grega por concupiscência, por
cobiça, uma forma aguda de sentir a presença de um desejo fortíssimo ou de
uma vontade irresistível. Paulo descreve assim as características ontológicas
de uma vida conformada ao desejo de prazer pelo prazer. Portanto, baseada
na própria confusão inerente ao fenómeno das vontades que nos dá.
Se, por um lado, e à partida, achamos que ir atrás daquilo de que se tem vontade, nos fará bom proveito, trará um ganho, será um bem. Por outro lado, logo no momento seguinte à obtenção do que se queria não apenas se percebe que o que se fez não trouxe nenhum bom proveito, mas também que nos frustrou, deprimiu. Na verdade, fazer o que se quer pelo simples querer pode ser fonte de sofrimento e de destruição. Portanto, vemo-nos esvaziados do próprio e cheios de elementos que nos são estranhos. Somos outros alienados pelas vontades que nos dá, sem termos querido autenticamente o que achávamos que queríamos e, indubitavelmente, a sermos outros a respeito do que poderíamos ter sido.
O resultado desta tensão especialmente vibrante entre fazer a vontade de Deus ou fazer a vontade que nos dá é o que Paulo tem claramente aqui sob foco. Ela pode ver-se descrita na I Epístola de João 2, 15-17: “Não ameis o mundo nem o que há no mundo (τὰ ἐν κόσμον). Se alguém ama ( γαπᾷ) o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo— a concupiscência da carne (ἡ ἐπιθυμία τῆς σαρκὸς/concupiscentia carnis), a concupiscência dos olhos (ἡ ἐπιθυμία τῶν ὀφθαλμῶν, concupiscentia oculorum) e o estilo de vida orgulhoso (ἡ λαζονία τοῦ βίου/iactantia diuitiarum/ambitio saeculi)— não vem do pai, mas sim do mundo. Ora, o mundo passa e também as concupiscências, mas quem faz a vontade de Deus permanece para sempre. (οὐκ ἔστιν ἐκ τοῦ πατρός, λλὰ ἐκ τοῦ κόσμου ἐστίν: [17] καὶ ὁ κόσμος παράγεται καὶ ἡ ἐπιθυμία [αὐτοῦ], ὁ δὲ ποιῶν τὸ θέλημα τοῦ θεοῦ μένει εἰς τὸν αἰῶνα.)”
A condição faz que sejamos instrumentos ao serviço de desejos e vontades que nos fazem querer o mundo e estarmos ao serviço da sua agenda ou então fazermos a vontade de Deus. Escoamos por nós abaixo ou resistimos.
Não estamos ainda preparados para perceber como somos nós próprios, melhor como é que eu serei eu mesmo ao fazer a vontade do Pai. Mas podemos perceber que não somos nós quando fazemos o que nos dá para fazer.
É desse agente da cobiça em mim que eu sou a sombra e de quem eu exprimo o conteúdo. Quer dizer, nós podemos ser na expressão impessoal portuguesa de perplexidade interrogativa: “Olha para o que me/lhe deu”. O conteúdo da minha vida: pensamentos, palavras, actos e omissões, pode ser exclusivamente o X, Y e Z para que me deu do deu-lhe para ali.
Quer dizer, a minha vida pode ser o lance projectado já desde sempre determinado, orientado por… e dirigido para… o que de cada vez me deu, dá e dará.
Eu sou este sujeito, súbdito e submisso, controlado pela vontade irresistível do desejo agudo que me dá. Eu sou este ente dominado pelo poder absoluto da fúria que me põe extaticamente fora de mim, a ser sempre por outrem em mim, a fazer o que de cada vez esse outro em mim quer que eu faça: o que lhe apetece, o que se deseja, a que se aspira.
Isto é, o Usurpador é a ambição, a cobiça, a avidez, a ganância que nos insta sermos seus escravos. A nossa vida poderia ter apenas como conteúdo: o que se comeu sofregamente com um apetite devorador.
Paulo leva ao extremo a condição peculiar da nossa servidão à realidade da carne, σάρξ, trabalhada pelos cobiças, ἐπιθυμίαι, e pelos desejos, ὀρέξεις, ao considerar os assaltos da
irresistível vontade que dá o desejo lancinante e a capacidade exponencial da escalada da violência e a forma como surpreendem: surtos que crescem em nós súbita e repentinamente, quando menos se espera, contra a nossa vontade e contra toda a previsão, abatendo-se sobre nós com a velocidade de precipitação e peculiar confusão entre mim e mim.
Eu poderei sempre dizer que eu não era eu, que eu não sei o que me deu, que eu não estava em mim. Mas, por outro lado, eu também não sei em que outro me tornei quando digo de mim para mim que já sou diferente, que me tornei outro. Outro relativamente a outro? Como? Se precisamente fiquei configurado pela imponente presença que me deixou a mim sem vontade nem querer.
O que me configura é a expressão máxima da condição de escravidão e servidão em que desde sempre já me encontrei: a ἁμαρτία, o que na tradução latina se traduz por pecado, de pecco, as, aui, are, peccatum que tem em sânscrito a raiz pik- ficar furioso. A raiz grega significa falhar o, e atirar além do, alvo, passar das marcas. O que o desejo, a aspiração, o apetite devorador, a vontade irresistível, a ambição, a cobiça e a ganância fazem ao substituírem-se a nós não é o que queremos mas confundem-nos ao ponto de nos fazerem pensar que é isso mesmo que queremos.
Assim a esfera do que peca, do que erra e falha, é vastíssima e não se circunscreve ao que habitualmente pensamos que é. Não se trata apenas dos pecados capitais nem daqueles que se prendem especificamente com a sensualidade ou a irascibilidade. Na verdade o pecado entendido como o que me obriga a concentrar-me em mim.
Faz-me esquecer de tudo o que não tenha que ver com o conteúdo em que estou única e exclusivamente interessado é total. Estende-se por todos os momentos da minha vida, porque a minha condição é tal que eu me sirvo a mim desde sempre, já à nascença.
Um outro em mim que estranhamente me habita, mas que não sou eu que me dá para fazer, agir, ser o que de cada vez faço, ajo, sou.
O pecado é o meu elemento.
“Eu sou o espírito que sempre e continuamente nega e com razão, pois tudo o que nasce mais valia que morresse, o melhor era mesmo que nada nascesse. E é, então, assim que ao que chamais pecado, destruição, numa palavra, o mal tudo isso é meu próprio e autêntico elemento”. (Ich bin der Geist, der stets verneint! // Und das mit Recht; denn alles, was entsteht, // Ist wert, daß es zugrunde geht; // Drum besser wär's, daß nichts entstünde. // So ist denn alles, was ihr Sünde, // Zerstörung, kurz das Böse nennt, // Mein eigentliches Element.) Goethe, Faust.
A minha relação passiva com essa condição testemunha-se de cada vez que tenho necessidade de ir até ao mundo para tratar de mim, com o carácter de maior ou menor urgência do instante.
A fome é a minha fome no preciso instante em que se faz sentir e só penso em comer, isto é, quando ela me submerge na ditadura do seu instante e me isola na sua cápsula. A sede é a minha sede no preciso instante em que se faz sentir e só penso em beber, isolando-me consigo no conteúdo preocupante e necessário do que preciso. E até o sono é o meu no momento em que me adormece. O cansaço em geral é o meu cansaço, quando me cansa. O mesmo com a minha sexualidade, a minha auto-afirmação, o meu feitio e temperamento, a minha peculiaridade, a avidez incontrolável da vontade de saber, a minha afectação pelo sublime na arte ou na natureza, a precipitação cega da força da minha vontade, mas também a minha mais profunda necessidade religiosa: todas estas tendências mais ou menos acentuadas e que vincam as dobras do tecido de que a minha vida se encontra revestida encontram-se enraizadas na condição aparentemente não anulável, inexpugnável, irresistível, incontrolável da minha servidão e da minha escravidão de nascimento: A MIM.
Eu sou esta fúria que me dá, este tiro que erra o alvo, falha objectivos, se excede, passa das marcas, sai para fora dos eixos, transgride, ultrapassa os limites. Sou por outro, ou por outros, e até no momento da submersão e do naufrágio no isolamento absoluto em que sou a fome, a sede, o apetite sexual, a curiosidade científica, a auto-afirmação, o temperamento, humor e feitio, a cegueira da vontade, o toque do sublime, a necessidade religiosa: eu sou isso tudo para que me deu, sem margem de manobra, totalmente absolvido dos outros, só eu e o meu mundo. (Karl Barth, Römerbrief).
E até no simples adormecer de cansaço tão compreensivelmente humano, posso converter-me em traidor:
Lc, 22. 45-46: “Depois de orar, levantou-se e foi ter com os discípulos, encontrando-os a dormir, devido à tristeza. Disse-lhes: ‘Porque dormis? Levantai-vos e orai para que não entreis em tentação’”.
O esplendor da glória de Deus é trocado pelo (e reduzido ao) reflexo confuso da sua assimilação por uma imagem de um outro humano em nós ou noutrem, mera fachada destrutível do que é susceptível de amor. O campo das possibilidades de chegarmos ao que cumpre, preenche e dá a plenitude abundante, fica reduzido à avidez cobiçosa do desejo de prazer pelo prazer ou à descarga violenta da ira a que ficamos expostos. A consequência é supressão de qualquer valor ao corpo próprio. A nossa vida está configurada por essa caracterização ontológica da carne e dos conteúdos que lhe apetece.
Transmuta-se a verdade de Deus na falsidade: venera-se e serve-se a criatura
em vez do criador, 25: μετήλλαξαν τὴν ἀλήθειαν τοῦ θεοῦ ἐν τῷ ψεύδει καὶ ἐσεβάσθησαν καὶ ἐλάτρευσαν τῇ κτίσει παρὰ τὸν κτίσαντα.
Um lance existencial projectado assim, isto é, exposto ao que lhe dá para ser submerso pelo instante da asfixia da paixão, anistórico, não tem passado nem futuro, como se não houvesse amanhã, tem estes conteúdos, como produtos e obras da escravidão à impiedade e da servidão à injustificação: “iniquidade, malícia, ganância, maldade, inveja, assassínio, disputa, dolo, maus hábitos, calúnia, maledicência, ódio, insolência, orgulho, congeminação de males, desobediência aos pais, incompreensão, falta de entendimento,
insensibilidade, impiedade. (1. 29-32)”
É na ressaca e no rescaldo expressos pela fúria irada de Deus que Paulo interpreta uma possibilidade de anulação do domínio do Usurpador, uma possibilidade concedida na aparente desintegração total da existência. O Ultimatum é vivido aqui na situação crítica:
2, 4-: “não estarás tu a desprezar as riquezas da sua bondade, paciência e generosidade, ao ignorares que a bondade de Deus te convida à conversão (εἰς μετάνοιάν σε ἄγει: isto é, à mudança radical de disposição, transformação completa e catastrófica da compreensão das coisas e da nossa maneira de entendê-las.) Afinal, com a tua dureza e o teu coração imutável na sua compreensão (ἀμετανοήτος), estás a acumular ira sobre ti, θησαυρίζεις σεαυτῷ ὀργήν, para o dia da ira e da revelação do justo julgamento de Deus, ἐν ἡμέρᾳ ὀργῆς καὶ ἀποκαλύψεως δικαιοκρασίας τοῦ θεοῦ, que retribuirá a cada um conforme as suas obras, ποδώσει ἑκάστῳ κατὰ τὰ ἔργα αὐτοῦ. Para aqueles que, ao perseverarem na prática do bem, procuram a glória, a honra e a incorruptibilidade, será a vida eterna; para aqueles que, por rebeldia, são indóceis à verdade e dóceis à injustiça, será ira e indignação. Aflição e angústia (θλίψις καὶ στενοχωρία) para toda a vida, ψυχή, do ser humano que pratica o mal, primeiro o judeu e depois grego! Glória, honra e paz para todo aquele que pratica o bem, primeiro o judeu e depois para o grego! É que em Deus não existe acepção de pessoas, οὐ γὰρ ἐστιν ἀπροσωπολημψία παρὰ τῷ.”
A forma peculiar da interpretação visa precisamente duas possibilidades incompatíveis e que estão na base da disjunção exclusiva e assimétrica de que Paulo nos quer dar conta. Por um lado, temos a interpretação óbvia da aflição e da angústia da ira de Deus. A impossibilidade de escutar qualquer outra possibilidade provoca precisamente uma rigidez e inflexibilidade tal que não se vê outra possibilidade senão a de permanecer na situação em que de cada vez nos temos estado a encontrar: na servidão ao para o que nos dá.
Por outro lado, há a possibilidade de uma transformação catastrófica e completa da disposição, uma μετάνοια, ou seja, de uma metamorfose da compreensão em que no meio da fúria e da ira, da angústia e a da aflição se vê a possibilidade que lá ainda está dada, que possibilita a espera, que constitui ainda expectativa.
A resistência que assim é possibilitada é dada pela persistência eficaz da operação do bem. Esse vislumbre, que se dá num ápice, num abrir e fechar, como que num “flash” aparece uma outra configuração de vida, num fluxo e numa torrente da própria eternidade: indestrutível, nobre, esplendorosa. E nesse vislumbre dá-se uma possibilidade, oferece-se uma entrada, de desobediência ao que tem estado a constituir-nos e a possibilidade simultânea de obediência que resulta da compreensão do agente de uma proveniência improvável, impossível e inexistente que reluz na precipitação e inverte, ultrapassa, recupera, e oferece para ser.
Esta alternativa faz explodir pela primeira vez a barreira étnica, o constrangimento social, as barreiras temporais. É internacional. 2.2: Há aflição e angústia sobre toda a alma do humano que trabalha o mal, judeu primeiro e depois grego. 2.10: o esplendor da glória a nobreza e a paz para todo o que trabalhou o bem, judeu primeiro e depois grego. 2.11: não há acepção de pessoa junto de Deus: οὐ γὰρ ἐστιν προσωπολημψία παρὰ τῷ
θεῷ.
IV
É na sequência desta passagem em 2, 12-16 e depois 2, 17-29 que se enuncia o problema crucial da teologia Paulina a oposição entre νόμος e πίστις.
Não podemos deixar de a referir, mas não cabe aprofundá-la em toda a sua complexidade. É ela que está na origem da história do ocidente post-advento do Cristianismo e está na base das grandes revoluções teológicas e assim também espirituais europeias religiosas e filosóficas de Santo Agostinho, Martin Luther, mas também Kant, Kierkegaard, Heidegger, Karl Barth e Dostoievsky.
A oposição fulcral entre πίστις e νόμος, a impossibilidade de obtenção da graça por cumprimento do dever e observância da lei, na verdade a possibilidade da perdição varrem o domínio da lei no humano. É a possibilidade da mudança radical, da viragem total, provocada e trabalhada pela Graça e pelo sopro santificador que sedimentam a fé. E nessa altura não existe acepção de pessoa junto de Deus: οὐ γὰρ ἐστιν ἀπροσωπολημψία παρὰ τῷ θεῷ.
A compreensão do que aqui está enunciado faz desintegrar o Judaísmo como religião baseada no mandamento da lei e transmitida em tradição apenas segundo os laços de sangue, expresso simbolicamente pela circuncisão. É assim que se percebe o bordão repetido nesta fase inicial da Epístola da escala étnica: primeiro o judeu e depois o grego (o que leva a perguntar se os de Roma são romanos ou são emigrantes ou se antes somos todos nós).
Não apenas se vê explodir a circunscrição étnica e racial de Deus dos Judeus como se vê a mais complexa internacionalização do amor e da vontade de Deus. A história do rompimento com a religião judaica implica também um ataque contemporâneo, portanto, insere-se numa manobra táctica que resgatou para sempre o evangelho à eminência de ser engolido historicamente como uma seita judaica.
Se o objectivo final é a salvação apenas a obediência ou desobediência à féμresultante da obra e graça do espírito santificador poderá prometê-la, anunciá-la e garanti-la. Por outro lado, a obediência ou desobediência à lei não poderão anunciar, nem prometer ou garantir a boa nova. 2, 12: De facto, todos os que sem lei pecaram, também sem lei
perecerão; e todos os que sob o regime da Lei pecaram, pela Lei serão julgados. É que não são os que ouvem a Lei (οἱ ἀκροαταὶ νόμου) que são justos diante de Deus, mas os que praticam como se fizessem a Lei (οἱ ποιηταὶ τοῦ νόμου) é que serão justificados.
Com efeito, quando há gentios que, não tendo a Lei, praticam, por inclinação natural, o que está na Lei, embora não tenham a Lei, para si próprios são lei. 2.14: ὅταν γὰρ ἔθνη τὰ μὴ νόμον ἔχοντα φύσει τὰ τοῦ νόμου ποιῶσιν, οὗτοι νόμον μὴ ἔχοντες ἑαυτοῖς εἰσὶν νόμος. Esses mostram que o que a Lei manda praticar está escrito nos seus corações, tendo ainda o testemunho da sua consciência tal como dos pensamentos que, conforme o caso, os acusem ou defendam— isto no dia em que Deus, segundo o meu Evangelho, há-de julgar por Jesus Cristo o que de oculto houver nos homens [15] οἵτινες ἐνδείκνυνται τὸ ἔργον τοῦ νόμου γραπτὸν ἐν ταῖς καρδίαις αὐτῶν, συνμαρτυρούσης αὐτῶν τῆς συνειδήσεως καὶ μεταξὺ ἀλλήλων τῶν λογισμῶν κατηγορούντων ἢ καὶ ἀπολογουμένων, ἀνθρώπων κατὰ τὸ εὐαγγέλιόν μου διὰ Χριστοῦ Ἰησοῦ.
As duas formas de obediência à lei e à fé são absolutamente assimétricas. No interior exclusivo de um quadro legal todos os nossos actos são lícitos ou ilícitos. Os meus comportamentos são julgados como dentro ou fora da lei, são-lhe conformes ou lesam-na. Assim, a nossa relação com a lei implica qualquer coisa como satisfação por cumprimento ou insatisfação por incumprimento.
A possibilidade catastroficamente radical de que nos fala Paulo não é uma possibilidade cuja origem e proveniência sejam humanas. A lógica de obtenção do lucro e do ganho baseados na satisfação com o cumprimento da lei, evitando a insatisfação pelo incumprimento, baseado numa lógica de cálculo de oportunidades de ganhos e de perdas é demasiadamente humana.
Por essa lógica reduz-se a vida a uma esperteza, a uma Klügheit, a uma organização da existência em função do jogo. Quanto mais zelosos formos, cumpridores do dever, quanto mais nos emularmos, tanto mais lucro obteremos. Quanto mais descuidados formos, mais desleixados e incumpridores perderíamos. A nossa vida passaria a entrar para uma cotação de bolsa em que marcaríamos pontos junto de Deus.
E, contudo, como no jogo, há simulação, ganho e lucro, orgulho, vãglória. O que me trabalha é o vão e o vazio.
2.17-: “Mas, se gostas que te chamem judeu, te apoias na Lei e te glorias de Deus, conheces a sua vontade e sabes, instruído pela Lei, o que há de melhor a fazer; se estás convencido de ser guia de cegos, luz dos que vivem nas trevas, educador dos ignorantes, mestre dos simples, por estares na posse do conhecimento e da verdade que têm na Lei a sua expressão… Ora, como é que tu, que ensinas os outros, não te ensinas a ti próprio? Pregas que se não deve roubar, e roubas? Que dizes que não se deve cometer adultério, e cometes adultério? Que abominas os ídolos, e saqueias os seus templos? Tu, que te glorias da Lei ofendes a Deus pela transgressão da Lei! De facto, o nome de Deus por vossa causa é blasfemado entre os gentios, conforme está escrito”.
Essa possibilidade assimétrica, incomensurável, cuja raiz é a fé tem uma origem e proveniência indisponível a priori no mundo. É uma possibilidade que não pode ser comunicada como um conteúdo de saber que outro domine. Parte-se da circunstância radicalmente nova e extrema da teologia da Cruz. Há testemunho dessa possibilidade de configurar a vida de um modo total e absolutamente diferente daquele que obtém o lucro e o ganho pelo cumprimento da lei e satisfação do dever. A possibilidade que a fé dá, oriunda e dispensada por Deus, configura um sistema de sentido que não é redutível nem à satisfação nem à insatisfação do dever, nem ao cumprimento nem ao incumprimento da lei. O seu sentido extravasa explodindo para fora daqueles limites. Por outro lado, a fé não constitui nem constituirá jamais pela própria natureza do quadro geral de sentido um sistema legal de normas e preceitos, de deveres e obrigações, do que há para fazer e não se pode fazer, de deveres, de poderes, de permissões.
V
A alternativa consiste pois em fazer explodir a condenação à escravidão ao pecado e também à observância da lei. Cada uma destas formas de prisão isolam-nos e submergem-nos no agora como se não houvesse amanhã, sobrecarregam-nos de uma maneira tal que erradicam qualquer outra possibilidade de vida. É na situação crítica de fecho claustrofóbico, no desespero da aflição e da angústia, que irrompe uma possibilidade.
Num esquema de vida baseado na obediência à lei, ao comando que reduz o que se é, o que se pode, ao que se deve e não deve ser, vivemos estimulados pela ultrapassagem do limite por sobrecarga da obediência. A lei é a tentação, o fruto proibido, que não apenas não é eliminado, mas se faz cobiçar. A lei pode ser a porta de passagem para o que ela justamente interdita e proíbe. A nossa satisfação seria reduzida às vezes em que resistimos e não lhe cedemos. Um contentamento que insufla para logo ser abreviado por novas tentações. E a imaginação da tentação nem precisa de ser fértil: o comando de interdição pode transformar-nos no prazer da sua transgressão.
A satisfação que se sente com o incumprimento do dever, ao lesar e ferir de nulidade todo e qualquer princípio de lei, leva à perversão do gozo extremo e prazer total derivado do mal.
4.16-: “Não foi em virtude da Lei, mas da justiça obtida pela fé que a Abraão, ou à sua descendência, foi feita a promessa de que havia de receber o mundo em herança. De facto, se os herdeiros o são em virtude da lei, nesse caso tornou-se inútil a fé e ficou sem efeito a promessa. É que a lei produz a ira; mas onde não há lei também não há transgressão. Por isso, é da fé que depende a herança. Só assim é que esta é gratuita, de tal modo que a promessa se mantém válida parar todos os descendentes.”
A ἐπαγγελία, a promessa, é garantida apenas pela justificação da fé, διὰ δικαιοσύνης πίστεως. De outro modo, se a fé for anulada também a promessa é neutralizada: κεκένωται ἡ πίστις καὶ κατήργηται ἡ ἐπαγγελία. A lei produz a fúria e possibilita a transgressão: ὁ γὰρ νόμος ὀργὴν κατεργάζεται· οὗ δὲ οὐκ ἔστιν νόμος οὐδὲ παράβασις. É no próprio reconhecimento da condição em que nos encontramos que encaramos a libertação da lei da morte pela transposição do regime de servidão para o domínio próprio e autêntico do seu Senhor.
Isto é, a consciência aguda da presença lancinante da fúria de Deus, a aflição e a angústia, a falta de esperança, a derrota, esgotam qualquer espécie de antecipação ao que quer que seja. A verdade apocalíptica diz: o horror para sempre, pois até “O belo é o princípio do horror” (das Schöne ist nichts als des Schrecklichen Anfang) Rilke.
Mas é precisamente no esgotamento completo de todos os nossos recursos, na perda de toda a possibilidade de resistência, que se testemunha também uma possibilidade radicalmente nova, nascida não se sabe onde, provinda não se sabe para quê, dada não se sabe por quem.
O anúncio faz-se de graça, é a promessa de que há uma possibilidade impossível. Impossível do ponto de vista mundano, impossível na psicologia da culpa, impossível deste lado de cá da vida. E contudo é esse impossível em que nos encontramos que é reconfigurado e se torna de novo no possível, numa nova aurora, numa outra hipótese, com uma outra oportunidade, pelo menos ainda. A promessa está constituída em anúncio novo da possibilidade de reclamar a herança. A promessa é o convite quase segredado na submersão e sucção do abismo: vem atrás de mim:
- 7-8: “Felizes aqueles a quem foram perdoados os delitos e a quem nforam cobertos os pecados! Feliz o homem a quem o senhor não tem em conta o pecado.” 5.1-5: “Portanto, uma vez que fomos justificados pela fé, ἐκ πίστεως, estamos em paz com Deus por Nosso Senhor Jesus Cristo. Por Ele tivemos acesso, προσαγωγή, na fé, τῇ πίστει, a esta graça, εἰς τὴν χάριν na qual nos encontramos firmemente e nos gloriamos, na esperança da glória de Deus, καυχώμεθα ἐπ’ ἐλπίδι τῆς δόξης τοῦ θεοῦ. Mais ainda, gloriamo-nos também nas aflições, καὶ καυχώμεθα ἐν ταῖς θλίψεσιν, sabendo que a aflição produz a paciência, καταργάζεται ὑπομονὴν, a paciência a firmeza, e a firmeza a esperança, ἐλπίς. Ora a esperança não engana, porque o amor de Deus foi derramado, ἐκκέχυται nos nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado”.
Coríntios II, 4. [5] οὐ γὰρ ἑαυτοὺς κηρύσσομεν ἀλλὰ Χριστὸν Ἰησοῦν κύριον, ἑαυτοὺς δὲ δούλους ὑμῶν διὰ Ἰησοῦν. Não somos nós que pregamos a partir de nós próprios, mas Jesus Cristo, senhor, pois nós próprios nos convertemos em escravos pelo fundamento de Jesus. [6] ὅτι ὁ θεὸς ὁ εἰπών Ἐκ σκότους φῶς λάμψει, ὃς ἔλαμψεν ἐν ταῖς καρδίαις ἡμῶν πρὸς φωτισμὸν τῆς γνώσεως τῆς δόξης τοῦ θεοῦ ἐν προσώπῳ Χριστοῦ. A razão é o facto de que Deus, Quem disse que a luz reluzirá da escuridão, foi quem fez e tem feito reluzir nos nossos corações a luz da nascença da glória e do esplendor de Deus no rosto concreto de Cristo.
[7] Ἔχομεν δὲ τὸν θησαυρὸν τοῦτον ἐν ὀστρακίνοις σκεύεσιν, ἵνα ἡ ὑπερβολὴ τῆς δυνάμεως ᾖ τοῦ θεοῦ καὶ μὴ ἐξ ἡμῶν: É assim, pois, que possuímos este tesouro em vasos de barro para que a superabundância da potência nos aconteça provinda de Deus e não a partir das nossas próprias forças [8] ἐν παντὶ θλιβόμενοι ἀλλ᾽ οὐ στενοχωρούμενοι, ἀπορούμενοι ἀλλ᾽ οὐκ ἐξαπορούμενοι, É assim que podemos estar na aflição total a respeito de tudo e ainda assim não totalmente asfixiados pelo esmagamento, é assim que podemos estar presos de grandes dificuldades e ainda assim não totalmente desesperados, [9] διωκόμενοι ἀλλ᾽ οὐκ ἐγκαταλειπόμενοι; καταβαλλόμενοι ἀλλ᾽ οὐκ ἀπολλύμενοι, perseguidos e não abandonados, abatidos e, contudo, não destruídos. [10] πάντοτε τὴν νέκρωσιν τοῦ Ἰησοῦ ἐν τῷ σώματι περιφέροντες, ἵνα καὶ ἡ ζωὴ τοῦ Ἰησοῦ ἐν τῷ σώματι ἡμῶν φανερωθῇ: Por toda a parte e durante o tempo todo das nossas vidas
transportamos a morte de Jesus no nosso corpo para que a vida de Jesus se deixe manifestar no nosso próprio corpo. [11] εὶ γὰρ ἡμεῖς οἱ ζῶντες εἰς θάνατον παραδιδόμεθα διὰ Ἰησοῦν, ἵνα καὶ ἡ ζωὴ τοῦ Ἰησοῦ φανερωθῇ ἐν τῇ θνητῇ σαρκὶ ἡμῶν. Com efeito, ao vivermos entreguemo-nos no encaminhamento da própria morte por Jesus, para que a vida de Jesus possa deixar manifestar-se nesta morte de carne que é a nossa. [12] ὥστε ὁ θάνατος ἐν ἡμῖν ἐνεργεῖται, ἡ δὲ ζωὴ ἐν ὑμῖν. E tudo isto de tal maneira que a morte trabalhar a partir do nosso interior para que a vida vos aconteça.
VI
6. 6: τοῦτο γινώσκοντες ὅτι ὁ παλαιὸς ἡμῶν ἄνθρωπος συνεσταυρώθη, ἵνα καταργηθῇ τὸ σῶμα τῆς ἁμαρτίας, τοῦ μηκέτι δουλεύειν ἡμᾶς τῇ ἁμαρτίᾳ, [7] ὁ γὰρ ποθανὼν δεδικαίωται πὸ τῆς ἁμαρτίας. Reconhecendo isto mesmo, a saber, que o velho homem [que fomos] foi crucificado em nós para que tornasse inerte o corpo de delito/pecado, para que não nos escravizássemos mais ao pecado, pois, na verdade, quem morre já deu justificação do
pecado.
[17] χάρις δὲ τῷ θεῷ ὅτι ἦτε δοῦλοι τῆς ἁμαρτίας ὑπηκούσατε δὲ ἐκ καρδίας εἰς ὃν παρεδόθητε τύπον διδαχῆς, [18] ἐλευθερωθέντες δὲ πὸ τῆς ἁμαρτίας ἐδουλώθητε τῇ δικαιοσύνῃ: é Graças a Deus que haveis sido escravos do pecado, mas agora, porém, que haveis obedecido de coração à configuração do saber a que vos haveis entregue tende-vos libertado do pecado e haveis-vos tornado escravos da justiça. [22] νυνὶ δέ, ἐλευθερωθέντες πὸ τῆς ἁμαρτίας δουλωθέντες δὲ τῷ θεῷ, ἔχετε τὸν καρπὸν ὑμῶν εἰς ἁγιασμόν, τὸ δὲ τέλος ζωὴν αἰώνιον. De agora em diante tendo vos libertado do pecado haveis-vos tornado escravos de Deus, tendes vosso fruto em direcção à santificação, a sua completude é uma existência contínua, plena, cheia para sempre. 2 8.21ὅτι καὶ αὐτὴ ἡ κτίσις ἐλευθερωθήσεται πὸ τῆς δουλείας τῆς φθορᾶς εἰς τὴν ἐλευθερίαν τῆς δόξης τῶν τέκνων τοῦ θεοῦ. É, então, facto de que a criação terá sido libertada da escravidão à destruição em direcção à liberdade do esplendor da glória dos filhos de Deus.
A mesma condição de escravidão e servidão está reconhecida no facto não anulável do humano se encontrar de nascença numa situação que o condiciona e vincula, insusceptível de descondicionamento e de quebra de vínculo. Assim os que se prestam a ser escravos de si mesmos, a si mesmos obedecendo, é por que são escravos de quem obedecem, seja do pecado em direcção á morte seja da obediência em direcção à justificação.
A situação de tensão entre a escravidão à escravidão e a escravidão à liberdade não pode apenas ficar-se por uma mera explicação do facto da possibilidade da emancipação, de quem ficará para sempre com o estigma e marca indelével de que é o que fez.
O projecto da libertação não é também dada por nenhuma espécie de cálculo ôntico, mesmo que numa bolsa com um único corrector aos olhos de quem sou inflacionado ou deflacionado, junto de quem marco pontos e cresço na jactância solitária de mim mesmo ou caio esvaziado do sentido que apenas eu próprio criei para mim. A configuração da possibilidade da fé é constituída por uma oferta, por uma possibilidade, absolutamente excluída à partida do ponto de vista humano.
É o a priori dos a priori a estrutura originária da vida a fazer-se sob a dependência exclusiva de uma acção absoluta outra, irreconhecivelmente estrangeira. E, porém, confundindo-se com a própria origem, na renovação apocalíptica de todas as coisas:
Ap 21, 5:καὶ εἷπεν ὁ καθήμενος ἐπὶ θρόνῳ· ἰδοῦ καινὰ ποιῷ πάντα, e aquele que estava sentado no trono disse: olha eu faço todas as coisas de novo.
VII
13. 8: Não fiqueis a dever nada a ninguém, a não ser isto: amar-vos uns aos outros. Pois quem ama o próximo cumpre plenamente a lei. Μηδενὶ μηδὲν ὀφείλετε εἰ μὴ τὸ ἀλλήλοις ἀγαπᾶν· ὁ γὰρ ἀγαπῶν τὸν ἕτερον νόμον πεπλήρωκεν. De facto: não cometerás adultério, não matarás, não furtarás, não cobiçarás, bem como qualquer outro mandamento, estão resumidos numa só frase: Amarás o teu próximo como a ti mesmo. O amor não faz mal ao próximo. Assim, é no amor que está o pleno cumprimento da lei.
Este novo mandamento é, na verdade, o segundo. O primeiro lê-se em: Dt 6. 4-5: “Escuta, Israel! O Senhor é nosso Deus; o Senhor é único! Amarás o teu Senhor, teu Deus, com todo o teu coração, com toda a tua alma e com todas as tuas forças.” Mas a este a Epístola aos Romanos já dedicou suficientemente. O novo mandamento é concomitante e não apenas um corolário. Em João 13, 34: podemos lê-lo: “ἐντολὴν καινὴν δίδωμι ὑμῖν, ἵνα
ἀγαπᾶτε ἀλλήλους, καθὼς ὑμᾶς ἵνα καὶ ὑμεῖς ἀγαπᾶτε ἀλλήλους. 35 ἐν τοῦτῳ γνώσονται πάντες ὅτι ἐμοῖ μαθηταί ἐστε, ἐὰν ἀγάπην ἔχητε ἐν ἀλλήλοις”, dou-vos um novo mandamento. Que vos ameis uns aos outros; que vos ameis uns aos outros assim como Eu vos amei. Por isto é que todos reconhecerão que sois meus discípulos: se vos amardes uns aos outros.”
Depois em 15, 11: “Manifestei-vos estas coisas para que esteja em vós a minha alegria, e a vossa alegria seja completa.” e logo a seguir, depois de repetir o conteúdo do novo mandamento, esclarece-o: “Ninguém tem mais amor do que quem dá a vida pelos seus amigos. Vós sois meus amigos, se fizerdes o que Eu vos mando. Já não vos chamo servos, visto que um servo não está ao corrente do que faz o seu senhor; mas a vós chamei-vos amigos, porque vos dei a conhecer tudo o que ouvi ao meu pai.”
A Epístola aos Romanos na sua fase final invoca o novo mandamento de Jesus Cristo. E a dificuldade está em interpretar o que Paulo nos quer diz, depois de ter passado todo o tempo a destruir a lei no projecto de obtenção da salvação. A lei não apenas não pode ser cumprida, não pode dar satisfação, como também provoca a própria transgressão. Ora se o mandamento diz para amar o próximo como a si próprio, poderemos, ao cumpri-la, satisfazer esse dever? Não podemos também confundir-nos na nossa relação connosco e na nossa relação com outrem? Não poderemos por esse mandamento perverter o sentido da fé, isto é, fazer da fé a própria lei? Não seria isso a perversão das perversões? Não poderia o amor ao próprio e ao próximo dar azo a um desprezo maciço por si e por outrem? Converter o usurpador em Anti-Cristo?
Sim e não. Sim, se não se reconhecer o outro como susceptível de amor a ser no encaminhamento da morte na condição de escravidão ao pecado, fora da configuração da fé, não conformado a nada. Não, se efectivamente se reconhecer o outro como susceptível de amor na complexa e difícil relação dele consigo próprio em vista da sua libertação da escravidão. Apenas assim a vida não é em vão, eu fui. Valeu!
Da mesma forma que eu posso ser escravo de mim e viver a vida inteira a servir o usurpador, sem nunca me ter descoberto, sem nunca verdadeiramente me ter sabido susceptível de um “a mim autêntico” assim também, por maioria de razão, posso desconsiderar o outro, desrespeitá-lo na sua vida. Se olharmos rapidamente para as categorias empregues no Novo Testamento, verificamos que na formulação do mandamento encontramos várias palavras para o que dizemos em português ser o “próximo”.
Por exemplo, em Mt 22, 39 é “πλησίος” o próximo, o que está na vizinhança, mas na passagem da ER é “ἕτερος” o outro, o estranho, o estrangeiro. Na passagem de Jo 15, 13: a γάπη é pôr a sua vida à disposição dos seus amigos.
A aproximação vai da estranheza dos outros que são toda a gente que é como ninguém até à zona da vizinhança, que faz deles amigos e radicalmente os torna δελφοί. O outro, o próximo, o amigo e o irmão são graus que podem encontrar-se em cada um de nós, na relação de nós connosco mesmos, desde quando não nos reconhecemos, ficámos diferentes, nos tornamos outros, ou estamos cada vez mais na mesma iguais aos próprios. A passagem de João indica ainda que a nossa escravidão passa a ser esclarecida.
“Não vos falo como a escravos, δοῦλοι, porque o escravo não sabe o que faz o seu senhor, κύριος; falo-vos como amigos porque tudo o que escutei junto do meu pai vos fiz conhecer também a vós.”
É esta possibilidade da configuração de mim pelo próprio de mim e não por quem em mim me obriga a servi-lo, esta possibilidade por obra e graça do espírito Santo que ao derramar me faz uma promessa, na expectativa do que há por vir, nesse golpe de vista, ῥιπὴ ὀφθαλμοῦ, olhar retrospectivo da eternidade, onde há amanhã e a esperança substitui o desespero, a alegria desintegra a angústia e a aflição.
É esta reconfiguração do “a mim” em Deus que equaciona a viragem e me permite abrir ao outro na verdade da sua vida a ser no encaminhamento da morte. Sermos susceptíveis de Deus pela fé, e não pela lei, faz de nós portadores da possibilidade desta vivência concreta. Cada um é, singularmente e não individualmente, cada qual e tanto mais o próprio quanto mais se reconhece radicalmente susceptível de si próprio descoberto no amor de Deus por si. É assim também que o outro é reconhecido enquanto um outro configurando-se a si em Deus pelo amor que Deus tem por outrem. A possibilidade de me tornar em mim próprio e não no que me deu, a possibilidade de que o outro seja aí na possibilidade que é sua de ser como é e não como lhe deu para ser, tudo isto resulta já de um redimensionamento provocado e produzido pela transfiguração e metamorfose que nos permite dizer:
Deus queira e seja feita a Sua vontade, pois é essa a minha vontade: que eu seja o que Deus quiser.
Cada um de nós existe implicado no horizonte em que somos com outros nesta geração mas também nas dos nossos pais, avós e bisavós ou filhos, netos e bisnetos, na verdade, cada um de nós existe envolvido pelo horizonte humano desde a primeira geração que tiver havido até à derradeira pessoa da última geração que tiver deixado de ser. Cada um de nós é, assim, a priori, à escala mundial, o tempo da vida sempre a ser com todos os outros, mesmo que a “todos os outros”, aos “outros” não corresponda senão o conteúdo confuso de “muita gente”. Mas para além desta metamorfose da nossa vida que a faz explodir para fora dos limites estanques datados pelas certidões de nascimento e de óbito, esticando-se até aos confins dos tempos do que foi e do que será, ela é este lapso de tempo que dura um piscar de olhos durante o qual há outros que continuamente chegam no próprio instante em que outros estão a deixar de ser.
Cada um e cada qual é susceptível de comungar desta totalidade infinita, de uma forma concreta, em que as alegrias e os sofrimentos dos outros, passados, presentes e futuros, nos tocam e acontecem.
Cada um de nós pode ser esse horizonte aí que se sente na vida com os outros aos quais nos ligam laços íntimos e estreitos ou uma ligação vaga e até mesmo aparentemente inexistente. Os outros são, contudo, a possibilidade de os encontrarmos, de por eles aguardarmos a vinda ou de os guardarmos já depois da sua partida, mesmo quando deles estamos num contínuo desencontro, numa eterna despedida.
É a vida que verdadeiramente escancara a possibilidade de reconfigurar o conceito abstracto que resulta do somatório da população mundial. Estima-se que até ao ano 2010 seremos seis biliões e oitocentos e trinta milhões e duzentos e oitenta e três mil pessoas. O número estimado de pessoas que alguma vez viveram sobre a Terra é cerca de cento e vinte e cinco biliões de pessoas. No mundo inteiro, a cada segundo morrem 1, 6 pessoas, a cada minuto morrem 96. Nesta hora morreram 5760 e no dia de hoje 138240.
1 Reis 19: 11-13: DEPOIS (…) OUVIU-SE O MURMÚRIO DE
UMA BRISA SUAVE.”
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