PROTOCOLO de 27 de Outubro de 2011.
A questão passa naturalmente por saber como é que uma acção é completa ou se completa. “Completa é aquela acção pela qual a completude existe intrinsecamente ao mesmo tempo que o seu decurso (ἐκείνη <ᾗ> ἐνυπάρχει τὸ τέλος καὶ [ἡ] πρᾶξις.)” MF, 1048b22-23. Em causa está pensar no modo como uma possibilidade se concretiza, se torna realidade. Ou seja, como é que o que existe em potência, δυνάμει, passa a entrar em actividade de forma completa, ἐνέργειᾳ, ou, como diz Ross, passa a existir em actualização, ἐντελέχειᾳ. Embora, o sentido de “actualizar-se” não signifique tornar-se acto, activar-se, nem accionar, sem mais, mas diz em português qualquer coisa como aperfeiçoar-se, renovar-se, etc..
Aristóteles emprega o advérbio: “ᾗ” que é o dativo do feminino no singular do pronome relativo: ὅς, ἥ, ὅ, com sentido adverbial. Como advérbio de lugar enuncia o complemento circunstancial de lugar por onde, ou seja: o percurso por onde se percorre o de onde… aonde. Como advérbio de modo: é a maneira como.
Ora uma possibilidade não é pensada como estando num sítio. Não se desloca de um lugar de onde para ir por um caminho até chegar ao lugar onde chega. Nem se pode pensar que por essa deslocação como quer que seja pensada, se transforma em actualidade, entra em actividade, passa a estar em acção, se actualiza e fica plenamente desenvolvida. E se se pensar que de algum modo a possibilidade como condição do possível e a concretização do possível como a sua entrada em acção, esse modo é indeterminado.
A transformação do possível em realidade acabada dá-se numa dimensão temporal. O por onde é determinado pelo tempo em que se processa a transformação. Aquilo por que tem de passar algo para deixar de ser algo possível e passar a ser esse algo mas concretizado, numa realidade plena. Assim, pode perceber-se que o emagrecimento, a aprendizagem, a cura, o amadurecimento, o crescimento, o envelhecimento, são processos que se desenvolvem no tempo. Tratam-se de processos que se encontram em vias de ser nos seus encaminhamentos específicos, mas dependem do tempo para se “aperfeiçoarem”, “para chegarem ao fim”. Por outro lado, ver, pensar, intuir, viver, ser feliz, são processos que quando ocorrem estão já “aperfeiçoados”, “são já totais e completos”.
O que para já importa acentuar é o carácter específico de cada processo. O emagrecimento altera o corpo. Torna-o magro. A aprendizagem torna quem passa por ela dotado de uma habilitação que não tinha. Torna esse alguém entendido numa matéria. A cura dá saúde a quem foi tratado. O amadurecimento transforma o verde e imaturo. O crescimento aumenta o que é menor. O envelhecimento envelhece o jovem. Ou seja, o emagrecimento emagrece, a aprendizagem ensina, o crescimento faz crescer, o amadurecimento amadurece, o envelhecimento envelhece. Nos sufixos: -ecer, está pensado o processo incoativo: -sc-, -σκ-. Mas cada processo tem concreta e especificamente o seu modo de ser accionado, o seu particular desenvolvimento, o seu resultado ou terminus ad quem específicos. O emagrecimento emagrece, mas, enquanto tal, não ensina, não faz aumentar de volume ou maça, não amadurece, não envelhece. O mesmo se passando com cada um dos processos. Há um modo específico como se concretizam, há operadores determinados que actuam diferentemente consoante os processos em causa. A realização é pensada abstractamente como o que acontece no tempo e requer tempo para acontecer. O que não era passa a ser. Mas na verdade todos os processos são vias específicas, com ritmos e tempos próprios, formas de actuação e transformação dos materiais específicos que transformam. Mesmo que se trate sempre do humano, do corpo humano ou da alma humana, as transformações que operam não têm que ver, isoladamente, com nenhuma das outras. Pode-se pensar que é a mesma pessoa que emagrece, aprende, fica crescida, amadurece e envelhece. Mas o que lhe acontece por força dessas acções e dos processos que elaboram é completamente diferente nos seus resultados. Dão-se em tempos diferentes, em campos diferentes. O modo como se emagrece não é o modo como se aprende. O modo como se aprende não é como se envelhece, etc.
O que desencadeia uma acção, mesmo que incompleta, o que leva à mudança tem o seu campo específico de aplicação. O terminal das operações é diferente e depende especificamente dos agentes da transformação. O possível e inerte pode permanecer apenas possível e inerte, ou seja, impassível, insusceptível de accionamento, actividade, ser actualizado. Para emagrecer, podemos pensar no corte parcial, gradual ou total e de uma só vez de açucares, álcool, hidratos de carbono, etc., etc.. Mas não basta pensar. Importa efectivamente suspender a ingestão de alimentos que contenham esses elementos. Importa a suspensão sistemática e o actuação do tempo. A composição do corpo humano permite a compreensão dessa possibilidade. Ao ser posto em prática um regime dietético, percebe-se a sua acção. O mesmo se passa no processo de aprendizagem. A alguém pode ocorrer ir estudar uma determinada matéria. Às dez horas da manhã de um dia de um mês. Por essa ideia, pode alterar a vida. Ao decidir-se por estudar uma matéria, implica: inscrever-se num local, mudar de vida, organizar-se em função dessa realidade, aplicar-se, estudar, etc., etc.. Os campos de aplicação são diferentes, os resultados diferentes. Mas para cada caso há um por onde o possível deixa de ser possível, inerte e ineficaz e passa a ser posto em prática. Passamos a estar lá, por assim dizer, a fazer por isso como colaboradores numa decisão que tem os instrumentos próprios para a sua aplicação.
Os operadores são: τὸ κινοῦν, o motor ou mutante, o agente da mutação, o que tem a possibilidade de ser mutável, de sofrer a acção do agente da mudança, τὸ δυνάμει ὂν κινητόν. O κινητόν é enquanto passível de mudança mas não ainda mudado, aquilo relativamente ao qual a imutabilidade é o repouso ou a inércia: οὗ ἡ ἀκινησία ἠρεμία ἐστίν.
Ou seja a mudança é aquilo relativamente ao qual a ausência dela é repouso (ᾧ γὰρ ἡ κίνησις ὑπάρχει, τούτου ἡ ἀκινησία ἠρεμία).
A mudança é pensada como possibilidade. O agente pode não actuar e assim não surtir efeito. Nesse sentido a mudança possível fica inerte, não é activada, accionada ou actualizada. Nesse sentido não muda. É o que se diz de algo que não mudou. Não é desprovido da possibilidade de mudança, mas não mudou efectivamente. Ou seja, encontra-se onde estava, em sossego e inerte. Mas o que sucede quando o mutável é arrancado ao sossego, à inércia, à letargia em que se encontra? Isto é: o que transforma a ἀκινησία do κινητόν, a sua ἀδυναμία específica em κίνησις? Por onde? Qual é o buraco da agulha que encontra para se concretizar, activar, accionar, actualizar? Como é que o que não é ainda passa a estar em actividade. O que faz a actualidade de um possível?
Aristóteles diz que tem de haver em acréscimo a estas condições de possibilidade, necessárias mas não suficientes, algo que execute a mudança. É o ἐνεργεῖν: o operar intrínseco da actividade que transforma o possível: põe-no a trabalhar, em funcionamento, em exercício, conecta-o, liga-o, etc., etc.. O que faz entrar em actividade algo, arrancando-o à inércia e pondo-o em movimento, a mexer é o próprio mudar. τὸ γὰρ πρὸς τοῦτο ἐνεργεῖν, ᾗ τοιοῦτον, αὐτὸ τὸ κινεῖν ἐστι, Phys. 202a5-6.
Uma vez mais surge o enigmático advérbio ᾗ. A κίνησις é pensada como o ‘por onde’ a δύναμις passa a ἐνέργεια. Ou seja, por onde o possível é transformado em actividade. Não está dito que é completo. Mas está dito que há uma inércia vencida. Há uma não impossibilidade que resulta no início que se dá ao accionamento do possível. Como é que se inicia um processo de realização? Como é que o mutável em potência passa a ser feito entrar em acção? Como é que o mutável passa a encontrar-se em mudança activa? Como é que o susceptível de mudança é mudado?
Aristóteles descreve a mudança do mutável em mudado como um acontecimento, um contacto entre o agente da mudança e o mutável. O agente da mudança, o mutante, intervém no mutável. Essa intervenção é pensada como um toque, uma intervenção “cinérgica”, se assim se pode dizer, à semelhança de uma intervenção cirúrgica. Há uma θίξις, um contacto, bidimensional. Por um lado, pelo toque do agente interveniente dá-se uma operação, produz-se um efeito. Por outro lado, simultaneamente o mutável sofre esse toque, é “intervencionado”: τοῦτο δὲ ποιεῖ θίξει, ὥστε ἅμα καὶ πάσχει. O toque existe entre o interveniente e o intervencionado. A acção cinérgica actua cinergicamente no que é susceptível de mudança, no modo específico como actua a acção específica de que é agente e transforma o objecto específico da sua intervenção ao modo como intervém.
Tínhamos visto numa das sessões passadas de que forma é possível restabelecer a saúde no corpo humano por aquecimento através de uma fricção, τρίψις, (1132b26). O corpo humano é δυνάμει κινητόν, é susceptível de uma mutação, neste caso de temperatura. O quadro geral diz que a temperatura tem de ser homogeneizada, τὸ ὁμαλυνθῆναι (1032b19). Tal é obtido se o corpo humano vier a ser aquecido, εἰ θερμανθήσεται, (b20). O agente do aquecimento do corpo não é a percussão nem o aumento da temperatura ambiente (entrar num sauna, ligar o aquecimento), mas altamente específico: é uma fricção. No momento em que se compreende o corpo como susceptível de aquecer através de uma fricção, descobre-se uma possibilidade de alteração do seu estado de um determinado modo: ὑπάρχει δὲ τοδὶ δυνάμει· τοῦτο δὲ ἤδη ἐπ’ αὐτῷ (b20-21). A τρίψις realiza essa possibilidade. É o princípio da mudança que altera a doença em saúde: τὸ δὴ ποιοῦν καὶ ὅθεν ἄρχεται ἡ κίνησις τοῦ ὑγιαίνειν (b21-22). Ou seja, a τρίψις, fricção, é uma forma de θίξις, tal como o emagrecimento, a aprendizagem, o amadurecimento, o crescimento, o envelhecimento, etc., etc.: mutatis mutandis.
É por essa razão que a mudança não apenas acciona o mutável mas actualiza-o, fá-lo ser na acção específica que nele é accionada: διὸ ἡ κίνησις ἐντελέχεια τοῦ κινητοῦ, ᾗ κινητόν, συμβαίνει δὲ τοῦτο θίξει τοῦ κινητικοῦ, ὥσθ’ ἅμα καὶ πάσχει. O agente da mudança transfere continuamente a forma específica para o que pode mudar: εἶδος δὲ ἀεὶ οἴσεταί τι τὸ κινοῦν. Isto é, “põe-no em forma” quando não a tinha adquirido ou a penas a tinha na possibilidade. O agente transforma o mutável em qualquer coisa aqui mesmo que passa a ser deste modo e desta maneira a ter este tamanho: ἤτοι τό εἶδος ἢ τοιόνδε ἢ τοσόνδε, é o princípio e a causa da mudança no momento em que muda, actua como o agente da mudança: ὃ ἔσται ἀρχὴ καὶ αἴτιον τῆς κινήσεως, ὅταν κινῇ. É assim que o homem que existe completamente acabado faz um homem concreto a partir do homem na possibilidade (Phys. 202a5-12).
Themistius, in Aristotelis Physica Paraphrasis:
ἐπὶ τὸν ὁρισμὸν
τῆς κινήσεως. ὅταν δή τι ἄλλο ὂν ἐνεργείᾳ δυνάμει ἄλλο ᾖ, ἡ ἐνέργεια @1
(71.) αὐτοῦ, ἣ καθὸ δυνάμει ἐστί, κίνησίς ἐστιν· οὐδὲν γὰρ ἁπλῶς δυνάμει ὂν
μόνον, ἐνεργείᾳ δὲ οὐδὲν ἂν κινηθείη ποτ’ ἄν. διὰ τοῦτο οὐδὲ ἡ ὕλη
κινεῖται καθ’ ἑαυτήν, ὅτι μηδὲ ἔστι καθ’ ἑαυτὴν ἐνεργείᾳ. δεῖ οὖν ἐνερ-
γείᾳ τι εἶναι καὶ ἐνεργεῖν οὐ καθό τί ἐστιν, ἀλλὰ καθὸ δύναται εἶναι ἄλλο
τι, λέγω δὲ τὸ ‘καθὸ δύναται’· τοῦτον τὸν τρόπον· ἔστι γὰρ ὁ χαλκὸς (5)
δυνάμει ἀνδριάς, ἀλλ’ ὅμως οὐχ ἡ τοῦ χαλκοῦ ἐντελέχεια, ᾗ χαλκός,
κίνησίς ἐστιν (ἠρεμεῖ γὰρ καθὸ χαλκός), ἀλλ’ ἡ τοῦ δυνάμει αὐτῷ προ-
σόντος, ὑπάρχει δὲ αὐτῷ δυνάμει τὸ ἀνδριάντι γενέσθαι, ἡ δὴ τούτου
ἐνέργεια κίνησίς ἐστιν. οὐδὲν δὲ κωλύει καθὸ μὲν χαλκός ἐστιν, ἠρεμεῖν,
καθὸ δὲ δυνάμει ἀνδριάς, κατὰ τοῦτο κινεῖσθαι· οὐ γὰρ ταὐτὸν ἁπλῶς (10)
χαλκῷ τε εἶναι καὶ δυνάμει ἀνδριάντι· ἦν γὰρ ἂν καὶ τῷ λόγῳ ταὐτόν,
νῦν δὲ ἕτερα ταῦτα κατὰ τὸν λόγον, εἰ καὶ κατὰ τὸ ὑποκείμενον ἕν. καὶ
τοῦτο δέδεικται μέν, οὐδὲν δὲ κωλύει καὶ νῦν ἔτι σαφέστερον ἐπιδεῖξαι.
οὐκ ἔστι ταὐτὸν τῷ λόγῳ σώματί τε εἶναι καὶ δύνασθαι ὑγιαίνειν ἢ καὶ
δύνασθαι νοσεῖν· τὸ μὲν γὰρ σῶμα ἓν καὶ ταὐτὸν ἑαυτῷ, τὸ δὲ δύνασθαι (15)
ὑγιαίνειν καὶ δύνασθαι νοσεῖν οὐ μόνον ἕτερα ἀλλήλων, ἀλλὰ καὶ ἐναντία·
καὶ γὰρ αἱ ἐνέργειαι αὐτῶν ἐναντίαι. εἰ δὲ ταὐτὸν ἦν τὸ σῶμα ταῖς δυνά-
μεσιν, ἦσαν ἂν αἱ αὐταὶ καὶ αἱ δυνάμεις ἀλλήλαις. πάλιν οὐκ ἔστι ταὐτὸν
τῷ λόγῳ χρώματί τε εἶναι καὶ ὁρατῷ εἶναι (χρῶμα μὲν γάρ ἐστι τὸ
κινητικὸν τοῦ κατ’ ἐνέργειαν διαφανοῦς, ὁρατὸν δὲ τὸ συμβεβηκὸς τῷ (20)
χρώματι ἢ ὃ οἷόν τε ὁραθῆναι † καὶ τὸ ὁρατόν) οὐδὲ μὴν ψόφῳ καὶ
ἀκουστῷ οὐδὲ δὴ θερμῷ καὶ ἁπτῷ· οὐδὲ ἁπλῶς τῷ κατ’ ἐνέργειαν ὄντι
τὰ δυνάμει αὐτῷ προσόντα.
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