segunda-feira, 17 de outubro de 2011

Filosofia Antiga, Protocolo da sessão de 13/10



  • Iª Parte.
    Há uma canção dos Bodyrockers, “I like the way you move” (http://www.youtube.com/watch?v=2c8imenLWsg) outra dos Arctic Monkeys, “I Bet You Look Good On The Dance Floor” (http://www.youtube.com/watch?v=pK7egZaT3hs&ob=av2e) que nos põem perante uma pergunta decisiva. O que é uma maneira de alguém se mexer? O que é alguém “ter pinta na pista de dança”? O mexer-se, o dançar, o ter pinta não existem em lado nenhum. São características que alguém tem. A mesma pessoa X não se reduz nem à maneira de andar ou de dançar. Onde está X? Quem é X? 
    Se alargarmos o âmbito de questionamento: quem é X que eu vejo? Onde está a ΟΥΣΙΑ de alguém que me surge? Não é o rosto, nem o corpo, nem a fisionomia, nem o sexo, nem a idade, nem etnia. É algo que não está nisso nem pode ser dito disso: οὐκ εν τινι οὐ κατά τινος. Ou seja, a entidade não está no ente nem é dita do ente. O que eu tenho de X à minha frente é só fachada e fachada de uma essência que nunca, mas mesmo nunca me aparece. 
    Hipótese A. Os infinitivos sem sujeito. Nomen actionis e nomen rei actae.
    “É por isso que levanta uma dificuldade saber se podemos exprimir o que uma pessoa é se dissermos que é o andar, o curar-se, o estar sentada διὸ κἂν ἀπορήσειέ τις πότερον τὸ βαδίζειν καὶ τὸ ὑγιαίνειν καὶ τὸ καθῆσθαι”. O que é que queremos significar com o andar, o curar-se, o estar sentado? O andar, o curar-se e o estar sentado são infinitivos. As suas acções apenas podem ser concretizadas com os seus agentes. A gramática chama a esta forma de concretizar uma acção sem a poder evidenciar recortada em si mesma: “nomina actionis”. O ser individual que de cada vez é referido pelo seu andar, pelo seu curar-se e pelo seu estar sentado é o que está sendo dessas maneiras específicas. Para exemplificar o andar preciso de dizer: “X está a andar”, “Sócrates está a andar”. Para concretizar o que é curar-se penso em Calias que se curou ou foi curado. O mesmo para alguém que se senta. O estar sentado não é o resultado da anatomia e de uma possibilidade de solicitar determinados músculos, articulações, ossos que permitem flectir as pernas e assentar as nádegas num acento e encostar as costas às costas de uma cadeira. Um bebé não se consegue sentar. O sentar-se e estar sentado implica sem dúvida essa condição sine qua non. Mas o sentar-se e estar sentado é uma acção determinada que se dá de cada vez que nos sentamos ou de cada vez que vemos alguém sentar-se. O andar não é mexer alternadamente as pernas por forma a pisar o solo de deslocar-nos. Puxar e empurrar com os pés alternadamente apoiados no chão. O caminho faz-se ao caminhar. Só há estradas e passeios, não há o caminhar. Sem alguém caminhar não há caminho. O mesmo se passa no curar-se. A cura é um processo por que passa um paciente que lhe altera o estado doentio para um estado saudável.  “Ora nenhuma destas acções existe naturalmente constituída em si e por si mesma nem pode ser separada da entidade concreta que é o seu agente οὐδὲν γὰρ αὐτῶν ἐστὶν οὔτε καθ’ αὑτὸ πεφυκὸς οὔτε χωρίζεσθαι δυνατὸν τῆς οὐσίας)”
    Não é possível dar-se o “mexer-se”, o “andar”, o “estar na pista de dança”, o “sentar-se”, o  “curar-se” sem o substrato, o que subjaz e é o sujeito de cada uma dessas acções. Mas nenhuma dessas acções é o sujeito, a pessoa, o protagonista dessas acções. E contudo parece haver uma neutralização dessa diferença. Confundimos uma maneira de andar ou de olhar ou de dançar com uma pessoa. Sem dúvida que é o modo específico, o jeito e a maneira de uma pessoa ser, de ser o seu corpo. Mas o agente enquanto tal não está nessas acções nem é dito dessas acções. Uma pessoa é a entidade que protagoniza essas acções e essas acções são a forma peculiar como expressa o seu ser. Mas não é essas formas de expressão. Os infinitivos não podem no seu aspecto verbal enunciar o que é a coisa específica que assim se manifesta, nem o isto que se manifesta desta maneira. Os infinitivos não são fotografados. São formas altamente sofisticadas de dizer o ser de cada acção. O infinitivo do verbo ser, manifesta-se, existir: é a condição de possibilidade concreta que permite pensar um X. Mas o infinitivo é infinitivo, não tem pessoa nem tem tempo. O seu modo é o da indeterminação. 
    Se dissermos X existe, ou X é, alguém existe ou alguém é: através do infinitivo ser, tal como nos referimos ao sentar-se, ao andar, ao dançar, ao mexer-se, ao sentar-se e ao curar, estamos a dizer o quê? Qual é o sentido deste agente do ser? O que é que X faz para ser. Percebemos o que X faz para sentar-se, para curar-se, para se mexer, para sentar-se, levantar-se. Mas o que faz que isso tudo sejam modalidades do seu estar a ser? O que é preciso para ser-se quando o ser-se implica também um nomen actionis difícil de enunciar? Qual é a forma particular da presença de alguém que faz de alguém ser dessa maneira? Aristóteles diz precisamente que nenhuma dessas formas de dizer tudo o que se diz consegue significar a OΥΣΙΑ. 
    Hipótese B. Particípio presente.
    Aristóteles interroga-se se não conseguiremos exprimir melhor o que X é se enunciarmos a acção que de cada vez está a ter lugar e a ser através de particípios presentes (ἀλλὰ μᾶλλον, εἴπερ). Em vez de dizermos caminhar, dizemos o que caminha, o caminhante, τὸ βαδίζον, em vez de dizermos sentar, dizemos o que está sentado ou o que se senta, τὸ καθήμενον, e em vez de dizermos curar-se, dizemos: o que se cura, τὸ ὑγιαῖνον. Se acentuarmos o aspecto verbal do particípio presente,— o que podemos enunciar em português pela integrante que… ou pelo gerúndio, caminhando, sentando-se, curando-se— apontamos para uma acção em decurso, para o que está a transcorrer, já teve o seu início mas não teve o seu termo: está sendo: τὸ βαδίζειν/τὸ βαδίζον, τὸ ὑγιαίνειν/τὸ ὑγιαῖνον, τὸ καθῆσθαι/τὸ καθήμενον. Dá-se com o aspecto verbal do particípio uma alteração do sentido que não se opera com a indeterminação do infinitivo. Sem dúvida a forma nominal do particípio presente aponta como o infinitivo para um sentido que excede o mero substantivo. É assim que há uma relação complexa entre ser e sendo ou ser e ente no sentido em que o ente é o que está a ser, o que está sendo: Τὸ εἶναι é concretizado no que cada coisa individual e singularmente está a ser o que é. O ser é também concretizado pelo nomen actionis dos sendos específicos que de cada vez estão a desformalizar e a determinar melhor a acção abstracta, a acção de todas as acções que é alguém ou algo existir. A ousia refere cada coisa das que estão a ser ao modo específico do serem o que são (ἕκαστον αὐτῶν ὂν σημαίνει).
    Quando dizemos que X é o sendo do seu ser, referimos a actividade peculiar e não alienável de X ser o que é e não ser tudo o que não é. Mas há uma relação de não independência entre o substrato que subsiste e o subsistente, o resistente, o que não desistiu de ser  ou não tem cancelada esta possibilidade extraordinária e nunca vista directamente de estar sendo o ser que é. É assim que se passa com tudo o resto (ὁμοίως δὲ καὶ ἐπὶ τῶν ἄλλων ὁτουοῦν τῶν τοιούτων).
    A primeira conclusão é negativa e proibitiva. Interdita o “sendo” ser independente do subsistente, τὸ ὑποκείμενον, subiectum. Quer dizer, ser expressa uma morfologia não independente do agente do ser. Ser alguém implica esta condição de possibilidade que o faz ser. O que o faz ser e faz ser sendo o que é, permite: sentar-se, levantar-se, curar-se, adoecer, mexer-se, dançar, ter este e aqueloutro aspecto. O que alguém é é este “modo peculiar de ser tal como é”. Todos somos como toda a gente e ninguém. Mas cada um é como cada qual. O como alguém é, é determinado por advérbios. O ser de alguém e de algo é a forma peculiar como se apresenta. Não apenas o ser num determinado período de tempo, nem o estar num lugar, nem atitude do corpo, nem a qualidade específica das suas características e do seu potencial, o que faz e o que sofre. O que define alguém é a forma particular como existe, o que é preciso ter para ser o que é. Nada do que alguém faz, é, sofre, etc., etc., existe abstractamente fora do subsistente, do existente, que alguém é (οὐδὲν γὰρ αὐτῶν ἐστὶν οὔτε καθ’ αὑτὸ πεφυκὸς οὔτε χωρίζεσθαι δυνατὸν τῆς οὐσίας).
    Hipótese C: o substrato subsistente: 
    É isto, então, que parece ser mais o que os entes são, razão pela qual há algo que é o substrato subsistente que é definido por todas as outras categorias (isto é a ΟΥΣΙΑ e o que cada é singular, individual e particularmente), é precisamente essa identidade do que é uma coisa que reluz na categoria deste género: o ser bom e o estar sentado não podem ser ditos se não houver este substrato subsistente que persiste sendo (ταῦτα δὲ μᾶλλον φαίνεται ὄντα, διότι ἔστι τι τὸ ὑποκείμενον αὐτοῖς ὡρισμένον (τοῦτο δ’ ἐστὶν ἡ οὐσία καὶ τὸ καθ’ ἕκαστον), ὅπερ ἐμφαίνεται ἐν τῇ κατηγορίᾳ τῇ τοιαύτῃ· τὸ ἀγαθὸν γὰρ ἢ τὸ καθήμενον οὐκ ἄνευ τούτου λέγεται.)  
    “É evidente, por conseguinte que é por causa dela do estar sendo cada coisa a coisa que é que todas as outras são ditas dela, de tal sorte que o que primeiramente é, não apenas o que é, mas o que simplesmente de forma absoluta é, é a ousia (δῆλον οὖν ὅτι διὰ ταύτην κἀκείνων ἕκαστον ἔστιν, ὥστε τὸ πρώτως ὂν καὶ οὐ τὶ ὂν ἀλλ’ ὂν ἁπλῶς ἡ οὐσία ἂν εἴη.)” 
    Uma primeira aporia: mas assim vemos uma maneira de andar, o olhar de alguém, como dança. Mas não vemos quem é que anda, nem quem está por trás do olhar nem quem dança. A persistência contínua de X que não está cancelado é o agente do olhar, do andar, do dançar. Mas a persistência que resiste no tempo e mantém uma identidade diacrónica não é o andar, nem o olhar, nem o dançar, não é também o corpo, o rosto. É tudo isso, mas tudo isso integrado e sincronizado numa forma complexa de sentido que sintetiza todas essas acções numa forma de resistência temporal.
    1028b33: “A ousia diz-se se não de muitas maneiras pelo menos maximamente de quatro modos: Com efeito, a partir do que quer dizer ser o que X é, depois o que em geral X é, ainda, parece que o género de ser que X é corresponde à essência de cada coisa, finalmente em quarto lugar, a ousia é o substrato subsistente que integra todas os esquemas categoriais de X. (Λέγεται δ’ ἡ οὐσία, εἰ μὴ πλεοναχῶς, ἀλλ’ ἐν τέτταρσί γε μάλιστα· καὶ γὰρ τὸ τί ἦν εἶναι καὶ τὸ καθόλου καὶ τὸ γένος οὐσία δοκεῖ εἶναι ἑκάστου, καὶ τέταρτον τούτων τὸ ὑποκείμενον.)” O substrato é o sujeito [gramatical] de que se dizem todas as restantes determinações. Enquanto tal nunca é dito de outra coisa. Um sujeito não é dito de um outro sujeito. A principal acepção parece ser a matéria de que alguma coisa é feita. (τὸ δ’ ὑποκείμενόν ἐστι καθ’ οὗ τὰ ἄλλα λέγεται, ἐκεῖνο δὲ αὐτὸ μηκέτι κατ’ ἄλλου· διὸ πρῶτον περὶ τούτου διοριστέον· μάλιστα γὰρ δοκεῖ εἶναι οὐσία τὸ ὑποκείμενον πρῶτον. τοιοῦτον δὲ τρόπον μέν τινα ἡ ὕλη λέγεται)”
    IIª parte.
    Como temos estado a ver, as condições de possibilidade de referir o que quer dizer ser uma coisa a coisa que é, o ‘isto’ da maneira são não apenas a forma peculiar do ser X de um determinado modo mas também o facto da forma “encostar” e acontecer num subsistente, que lhe dá persistência diacrónica e identidade. O substrato é a matéria definível por uma forma. A matéria pode ser deformada e continuar a existir como substrato. O modo peculiar como Aristóteles pensa os princípios constitutivos de um ente não são contudo apenas estes. A forma subsiste continuamente em tensão com a sua peculiar forma de deformação. A matéria de qualquer coisa pode desintegrar-se. Com a desintegração perde-se a condição necessária da existência de uma matéria ser enformada. Mas a forma tem diversos modos de se deformar e com essa deformação, mesmo com a subsistência da matéria, uma coisa pode deixar de ser a coisa que era. Uma coisa existe entre limites: a sua formação e com a sua formação o princípio da deformação. Dito de outro modo, tudo o que passa a ser e vem à forma particular da sua existência está em tensão com a sua destruição, o seu não deixar de ser, o seu ter um dia deixado de ser, haver desaparecido. A στέρησις, a privação, a falha, o embargo ou cancelamento de qualquer coisa está a constituir o limite horizontal do que essa coisa é. Assim, a matéria, a forma e a privação constituem três princípios constitutivos da ΟΥΣΙΑ de algo. Quer dizer, X não é a posição absoluta e absolvida da sua contraposição, do seu não ser. Uma coisa não é a entidade matemática e abstracta que parece manter-se idêntica a si mesmo, sendo sempre do mesmo modo, sendo sempre o que é. X está em tensão com o seu não ser X. 
    Como no pensamento de Anaximandro, fr. 1. : SIMPLIC. Phys. 24, 13 [vgl. A 9]:
    “Anaximandro disse que o ilimitado é o princípio dos entes, é de onde os entes têm o seu passar a ser, é também para lá que a sua destruição os leva, de acordo com o necessário (…) de acordo com a organização intrínseca do tempo. ( Ἀ. ... ἀρχὴν .... Εἴρηκε τῶν ὄντων τὸ ἄπειρον .... ἐξ ὧν δὲ ἡ γένεσίς ἐστι τοῖς οὖσι, καὶ τὴν φθορὰν εἰς ταῦτα γίνεσθαι κατὰ τὸ χρεών (…) κατὰ τὴν τοῦ χρόνου τάξιν.)” H. Diels and W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratiker, vol. 1, 6th edn. Berlin, Weidmann, 1951.
    Isto é, o primeiro momento radical de qualquer coisa não é apenas constituído pela sua geração, pela sua vinda a ser. Nesse primeiro momento começou o seu deixar de ser, o seu desaparecimento, a sua destruição. O plano de fundo que Anaximandro enuncia, o ilimitado, é continuamente este fazer ser e fazer deixar de ser continuamente X. O primeiro momento é sempre o princípio do fim. As coisas está como que a “andar” de costas voltadas para o passado, num trânsito contínuo, tal que formalmente a organização do tempo é a do fim, da contagem decrescente. O primeiro momento de X tem a projecção do seu último momento, e do seu já não ser e ter deixado de ser X. No aprazamento e caducidade de cada coisa não se está a pensar apenas em animais, vegetais, homens. Há Deuses que desapareceram. O teorema de Pitágoras não existia antes de ter sido formulado e deixar de existir quando já ninguém houver para o formular. Oceanos e Continentes alteraram a sua configuração. Nada há incólume a esta tensão do que é com o seu fim. É com base nestes princípios que Aristóteles pergunta acerca da possibilidade de compreensão e determinação do que é este processo por que uma coisa passa que faz dela existente: a gera. Por outro lado, pergunta pelas condições de possibilidade da mudança, alteração e transformação de qualquer coisa. Ou seja, de entres as coisas que são e que são diferentes no seu género como é possível pensar-se a sua mudança? E será a geração de qualquer coisa uma transformação do não ser essa coisa no ser essa coisa? É a geração uma mudança? E a destruição é também uma mudança? O que faz de X não X é uma destruição. Sem dúvida. Mas poderá falar-se de mudança? É que X já não subsiste. Todo ele desapareceu ou destruiu-se.
    Nos diversos processos que estão na base da existência das coisas de diferentes origens e proveniências, Aristóteles pensa por um lado o surgimento de uma ΟΥΣΙΑ, a sua génese e a sua destruição. Pensa também, por outro lado, o processo de transformação e mudança porque passa uma ΟΥΣΙΑ ao longo do tempo em que mantém uma identidade de si. A transformação é uma alteração que pressupõe uma substância gerada e não ainda destruída. Assim, parece haver por um lado aparecimento e desparecimento de substratos e por outro lado alterações no seu próprio ser. De certa forma a γένεσις é uma κίνησις de acordo com a substância: uma παρουσία, uma presença, uma vinda à presença, um apresentar-se maciço de algo aí. Por outro lado, a οὐσία admite para além da presença uma ἀπουσία maciça, um desaparecimento total. Pode haver a hipótese metafísica do mundo como o sujeito de todas as coisas que lá se encontram e que por isso, aparecimento e desaparecimento de substâncias no mundo são os seus acidentes. Ou seja, sob a perspectiva de um todo contínuo, permanente e subsistente, as coisas que aparecem e desaparecem são entendíveis como modificações no mundo, mas não radicalmente novidades, por assim dizer. O que se passa quando damos conta de que uma paisagem está mudada? Uma árvore a menos no jardim. A árvore foi cortada, desapareceu, morreu, foi queimada na lareira. Mas por outro lado o desaparecimento da árvore é apenas uma modificação acidental do jardim, da paisagem, da percepção passada. Como veremos a mudança é qualitativa.
    A geração, γένεσις, o passar a ser.
    Na MF, Z, 7-9, Aristóteles considera diversos horizontes em que os entes vêm a ser: “Τῶν δὲ γιγνομένων τὰ μὲν φύσει γίγνεται, τὰ δὲ τέχνῃ, τὰ δὲ ἀπὸ ταὐτομάτου, uns vêm a ser por natureza, outros por arte ou perícia, outros ainda formam-se espontaneamente.” Os dativos φύσει e τέχνῃ são dativos de causa ou fundamento (datiui causae). O ΑΠΟ com rege um genitivo de origem. Não importa perceber em detalhe a diferença da construção. Em ambos os casos está pensada a origem de onde provem qualquer coisa e um princípio causal que está na base do surgimento de cada coisa. 
    No passo seguinte, Aristóteles exprime a sintaxe ontológica da geração. “Tudo o que vem a ser vem é gerado por algo e resulta de algo tal como é algo. (πάντα δὲ τὰ γιγνόμενα ὑπό τέ τινος γίγνεται καὶ ἔκ τινος καὶ τί)”. A formulação da geração é um decalque da formulação da causa eficiente no livro Alfa minúsculo da metafísica. Tínhamos visto aí que “o de onde vem o princípio da mudança (causa efficiens, ὅθεν ἡ τῆς κινήσεως ἀρχή)” tinha a formulação alternativa: Χ ὑπό τινος κινηθῆναι, Χ ser mudado por algo. Aqui verifica-se apenas a substituição do verbo: κινηθῆναι por γίγνεσθαι. A formulação passiva mantém-se. O que vem a ser, o que passa a ser, o que se gera ou é gerado, é objecto de uma acção de um agente da passiva. 
    Independentemente das diferenças horizontais um ente natural, um ente técnico, um fenómeno espontâneo vêm a ser pela acção de um agente que os fez passar de um momento em que não existiam para um momento em que passaram a existir. O mesmo que se passa para o X que não era e passou a ser, passa-se também com a restantes categorias individuais. “O que X é é articulado de acordo com cada uma das categorias é isto aqui deste género, tem um tamanho, é de uma maneira, passa a ocupar espaço, etc. τὸ δὲ τὶ λέγω καθ’ ἑκάστην κατηγορίαν·  ἢ γὰρ τόδε ἢ ποσὸν ἢ ποιὸν ἢ πού.)”. Quer dizer o que X é implica-o logo num conjunto de determinações que são as suas.
    Para além deste aspecto geral de princípio, A. concentra-se nas diversas proveniências da geração. Considera a geração natural, o que se dá de forma espontânea, o acaso (καὶ 
    ἀπὸ ταὐτομάτου καὶ ἀπὸ τύχης παραπλησίως) e considera formas de geração fora do âmbito da natureza, as ποιήσεις: o que resulta da técnica ἀπὸ τέχνης, o que resulta de uma possibilidade ou capacidade ou potência, ἀπὸ δυνάμεως, e o que nasce do pensamento, ἀπὸ διανοίας. 
    ΦΥΣΕΙ
    “As gerações que são naturais são as que têm a sua origem na nautreza, é daí que resulta o passar a ser de algo. Aquilo a partir do qual são geradas chamamos matéria, aquilo pelo qual vêm a ser é qualquer um dos entes que existem na natureza. Aquilo em que eles se tornam é um homem, uma planto ou de qualquer coisa deste género e que chamamos substâncias de forma suprema. (αἱ δὲ γενέσεις αἱ μὲν φυσικαὶ αὗταί εἰσιν ὧν ἡ γένεσις ἐκ φύσεώς ἐστιν, τὸ δ’ ἐξ οὗ γίγνεται, ἣν λέγομεν ὕλην, τὸ δὲ ὑφ’ οὗ τῶν φύσει τι ὄντων, τὸ δὲ τὶ ἄνθρωπος ἢ φυτὸν ἢ ἄλλο τι τῶν τοιούτων, ἃ δὴ μάλιστα λέγομεν οὐσίας εἶναι)”. 1032a 15 e sg. Assim, o que tem matéria natural e o que se gera de acordo com a natureza e aquilo pelo qual existe de acordo com uma determinada forma é uma natureza homogénea. Um homem gera um homem. (καθόλου δὲ καὶ ἐξ οὗ φύσις καὶ καθ’ ὃ φύσις (τὸ γὰρ γιγνόμενον ἔχει φύσιν, οἷον φυτὸν ἢ ζῷον) @1 καὶ ὑφ’ οὗ ἡ κατὰ τὸ εἶδος λεγομένη φύσις ἡ ὁμοειδής (αὕτη δὲ ἐν ἄλλῳ)· ἄνθρωπος γὰρ ἄνθρωπον γεννᾷ· 
    ΠΟΙΗΣΕΙΣ—
    Geram-se a partir de uma perícia ou técnica ou arte todas as coisas que têm uma forma na lucidez (Quando falo de forma refiro-me o ser que cada coisa tem para ser o que é e à substância primeira) (ἀπὸ τέχνης (1032b.) δὲ γίγνεται ὅσων τὸ εἶδος ἐν τῇ ψυχῇ (εἶδος δὲ λέγω τὸ τί ἦν εἶναι ἑκάστου καὶ τὴν πρώτην οὐσίαν)”. A saúde na cabeça do médico é o que admite desformalização. O diagnóstico dos sintomas do doente, a despistagem de hipóteses, o quadro da etologia, a intervenção. Ou então, o projecto da casa a construir, a escolha do sítio e dos materais, a construção. Tanto a saúde como a casa estão em forma na lucidez de quem possui essas perícias e respectivas formas de intervenção. 
    Mas na compreensão de um X a partir de uma determinada forma, pensa-se também, como vimos a sua peculiar forma de anulação. O modo próprio de um X ser privado de si. A forma implica sempre uma formação e uma deformação. No caso da saúde, o limite extremo que a priva é a doença. A doença e a saúde são limites extremos que têm de ser conhecidos por quem tem a forma da saúde e a sua deformação na lucidez (καὶ γὰρ τῶν ἐναντίων τρόπον τινὰ τὸ αὐτὸ εἶδος)
    Ou seja, a entidade é pensada como forma e o seu oposto: privação e oposição. É o caso da saúde relativamente á doença. A presença da doença é a ausência da saúde, a saúde por outro lado é o sentido dela que existe na cabeça de quem percebe de saúde e tem o saber dela. O saudável nasce depois de ter estado doente. (τῆς γὰρ στερήσεως οὐσία ἡ οὐσία ἡ ἀντικειμένη, οἷον ὑγίεια νόσου, ἐκείνης γὰρ ἀπουσία ἡ νόσος, ἡ δὲ ὑγίεια ὁ ἐν τῇ ψυχῇ λόγος καὶ ἡ ἐπι- (5) στήμη. γίγνεται δὲ τὸ ὑγιὲς νοήσαντος οὕτως)
    Imaginemos que a saúde ou estado saudavel corresponde a isto específico e concreto, que é necessário para X estar saudável que esteja neste estado particular, por exemplo, a homogeneidade de temperatura. Se assim for, a normalidade pode ser gerada por calor. O médico pensa assim e compreende sempre as coisas desta maneira por forma a intervir. Assim actua ao levar o que projecta ser a cura até às últimas consequências e é capaz de o fazer (ἐπειδὴ τοδὶ ὑγίεια, ἀνάγκη εἰ ὑγιὲς ἔσται τοδὶ ὑπάρξαι, οἷον ὁμαλότητα, εἰ δὲ τοῦτο, θερμότητα· καὶ οὕτως ἀεὶ νοεῖ, ἕως ἂν ἀγάγῃ εἰς τοῦτο ὃ αὐτὸς δύναται ἔσχατον ποιεῖν.) 
    Curar é esta alteração induzida, a mudança operada, a intervenção cirurgica que sai da cabeça do médico e é materializda no doente, desformalizada da sua cabeça, posta em prática, realizada. (εἶτα ἤδη ἡ ἀπὸ τούτου κίνησις ποίησις καλεῖται, ἡ ἐπὶ τὸ ὑγιαίνειν.) O que se passa com a saúde passa-se com a construção da casa. O médico e construtor têm na cabeça a forma que se projecta sobre o mundo e permite a intervenção. (ὥστε συμβαίνει τρόπον τινὰ τὴν ὑγίειαν ἐξ ὑγιείας γίγνεσθαι καὶ τὴν οἰκίαν ἐξ οἰκίας, τῆς ἄνευ ὕλης τὴν ἔχουσαν ὕλην· ἡ γὰρ ἰατρική ἐστι καὶ ἡ οἰκοδομικὴ τὸ εἶδος τῆς ὑγιείας καὶ τῆς οἰκίας, λέγω δὲ οὐσίαν ἄνευ ὕλης τὸ τί ἦν εἶναι.)
      
    O médico tem uma νόησις uma forma de compreensão do estado do doente. Projecta diversas hipóteses e intervem. A compreensão resulta do princípio e da forma. A forma da compreensão é o que está na base do projecto de intervenção. A intervenção específica e o modo de proceder é o que acontece em último lugar depois da compreensão de como se deve intervir. (ἡ μὲν ἀπὸ τῆς ἀρχῆς καὶ τοῦ εἴδους νόησις ἡ δ’ ἀπὸ τοῦ τελευταίου τῆς νοήσεως ποίησις.) E é assim também que se compreende o processo de intervenção: da compreensão à intervenção e da intervenção nas suas fases iniciais até à fase última de tratamento (ὁμοίως δὲ καὶ τῶν ἄλλων τῶν μεταξὺ ἕκαστον γίγνεται.) 
    Se para se obter saúde for necessário induzir no corpo uma homogeneidade ou normalidade, pode perguntar-se como é obtível essa normalização? A resposta é: assim deste modo, por exemplo se o corpo vier a ser aquecido. E como é que isso pode ser feito? Pode ser feito desta maneira porque o corpo humano é susceptível de ser aquecido. E assim até ter procedido. (λέγω δ’ οἷον εἰ ὑγιανεῖ, δέοι ἂν ὁμαλυνθῆναι. τί οὖν ἐστὶ τὸ ὁμαλυνθῆναι; τοδί, τοῦτο δ’ ἔσται εἰ θερμανθήσεται. τοῦτο δὲ τί ἐστι; τοδί. ὑπάρ- (20) χει δὲ τοδὶ δυνάμει· τοῦτο δὲ ἤδη ἐπ’ αὐτῷ.) 
    A forma de aquecer o corpo não é metê-lo no sauna ou agredi-lo ao chicote. Há um processo técnico de fricção por massagem que induz aumento de temperatura no corpo. O corpo é susceptível dessa intervenção, etc., etc..

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