I
Depois de termos
já dito, primeiramente, que se deve escolher
o meio, e não o
excesso nem o defeito, e que o meio, por sua vez,
é tal como indica
o sentido orientador, chegou agora a altura de
o analisarmos.
Há para todas as
disposições do carácter referidas, tal como para
todas as
excelências, um determinado objectivo em vista do qual
quem dispõe de um
sentido orientador aumenta ou diminui a tensão
nessa direcção. Há
também um certo horizonte que delimita as posições
intermédias, as
quais, dissemos, residem no espaço intermédio
entre o excesso e
o defeito, uma vez que elas existem conformadas
pelo sentido orientador.
Mas, se falar
assim, é verdade, por outro lado,
não é nada claro.
Pois, não menos falamos verdade, quando dizemos,
a respeito das
restantes preocupações humanas, que podem
ser tratadas
cientificamente, que não devemos aumentar a tensão ou
relaxá-la, nem
mais nem menos do que é devido, mas que devemos
proceder em
conformidade às disposições do meio e tal como as
prescreve o
sentido orientador. Contudo, quem souber disto, não está
na posse de um
saber por aí além, acerca do que quer que seja,
pois não saberia,
por exemplo, aplicar nenhuma espécie de tratamento
ao corpo humano,
só pelo facto de alguém dizer que se deve
aplicar toda a
espécie de tratamentos de acordo com o que prescreve
a medicina e o que
nela é perito. É por este motivo que também
a respeito das
disposições da alma humana não devemos contentar-
-nos apenas com o
facto de este enunciado ser verdadeiro, mas temos
também de obter
uma definição do que é ou do que pode ser
o sentido
orientador e qual é o horizonte a que ele se aplica.
Distinguimos já as
excelências da alma humana e dissemos que
umas eram
disposições éticas e outras disposições teóricas.
Ora nós já
discutimos as excelências do carácter. Passaremos agora
então a discutir
as teóricas, mas não sem antes tecermos algumas
considerações
acerca da alma humana.
Foi, pois, dito
primeiramente que há duas dimensões na alma
humana: uma é
capaz de razão, a outra é incapacitante de razão.
Por sua vez, a
dimensão capaz de razão tem de ser também distinguida,
do mesmo modo, em
duas partes. Admitamos, por isso, que
a alma enquanto
capaz de razão é dupla. Uma é aquela com a qual
consideramos
teoricamente todos aqueles entes com princípios que
não podem ser de
outra maneira. A outra é aquela com a qual consideramos
aqueles entes com
princípios que podem ser de outra
maneira. Se o modo
específico do acesso dessas dimensões da alma
tem uma certa
semelhança e uma determinada afinidade com os
entes com os quais
se relacionam, então as formas de acesso de cada
uma destas partes
serão diferentes, porquanto a formas diferentes
de acesso
correspondem diferentes géneros de ser.
Enunciemos cada um
destes géneros: um corresponde à possibilidade
de formação de
ponto de vista científico; outro, à possibilidade
de cálculo, ou
seja, mais propriamente à possibilidade de deliberar
e de calcular. Na
verdade, ninguém delibera acerca daquilo
que não pode ser
de outra maneira. Assim, a possibilidade de cálculo
inere numa parte
da dimensão da alma que é capaz de razão.
Temos, portanto,
de determinar qual é a melhor disposição destas
duas partes da
dimensão da alma que é capaz de razão, porque
será essa
disposição que poderá chegar à excelência em cada uma
delas. Ora a
excelência de cada ente é definida em vista da sua função
específica.
II
Há três operações
na alma que determinam de modo predominante
a acção e o
descobrimento da verdade161 , sc.
a percepção,
o poder de
compreensão e a intenção. Destas três, a percepção nunca
é origem de
nenhuma acção, o que é evidente pelo facto de os
animais, embora
tenham percepção, não tomarem parte na acção.
O que, por um
lado, no pensamento puro é afirmação e negação,
é, por outro, no
horizonte da intenção, perseguição e fuga. Assim,
uma vez que a
excelência do carácter é uma disposição que decide
e a decisão é uma
intenção deliberada, segue-se que, no caso
de se tratar de
uma decisão séria, o princípio de decisão terá de ser
verdadeiro e a
intenção correcta. O que o princípio afirma terá,
portanto, de ser o
mesmo que é perseguido pela intenção. A forma
do pensamento aqui
em causa é, assim, prática e esta verdade diz
respeito à acção.
O pensamento teórico, que não visa a acção nem
a produção, é
executado de uma forma correcta ou de uma forma
incorrecta,
respectivamente, conforme detecta a verdade ou se envolve
em falsidade.
Porque esta é, em geral, a função de todo
o pensamento.
Contudo a função
do pensamento prático é mais
propriamente a de
obter a verdade que corresponde à intenção correcta.
O princípio da
acção é a decisão (isto é, enquanto origem da
motivação, não
enquanto fim em vista); por outro lado, o princípio
da decisão é a
intenção e um cálculo dirigido para um objectivo
final. Por esta
razão, não há decisão sem o poder de compreensão,
nem sem processo
compreensivo, nem, finalmente, sem a disposição
do carácter. Na
verdade, agir bem e o seu contrário não existem na
acção sem o
pensamento teórico nem sem a disposição ética.
O próprio
pensamento só por si, não põe nada em movimento:
apenas quando se
dirige para um determinado fim numa determinada
acção. É assim
também que actua o pensamento produtor,
porquanto o
produtor de algo tem um determinado fim em vista.
É que o produzir
como tal não é nenhum fim em si mesmo (mas algo
relativo a algo e
formador de algo). Por outro lado, já o agir, e,
na verdade, o agir
bem, é um fim em si mesmo, e a intenção é o
princípio da
mudança específica que vai na sua direcção. Por isso,
a decisão é uma
compreensão intencional ou uma intenção compreensiva.
Neste sentido, o
princípio (da acção) é o Humano.
Nada do que já
aconteceu poderá, contudo, ser ainda objecto
de decisão.
Ninguém pode ainda decidir se Tróia terá sido destruída.
Assim, ninguém
delibera acerca do que já aconteceu mas sobre
o futuro e o que é
possível. Ora já não é possível que o que sucedeu
não tenha
sucedido. Por esse motivo, diz Agatão163 correctamente:
Apenas disto até
um Deus está privado de desfazer o que tiver sido
feito.
A desocultação da verdade é, pois, a função de
ambas as partes
da dimensão da
alma humana capaz de razão. As suas respectivas
excelências são
aquelas disposições de acordo com as quais se põe,
em cada caso, a
verdade a descoberto da melhor maneira possível.
III
Comecemos, então,
pelo princípio e analisemos as operações da
alma envolvidas na
descoberta da verdade, afirmando ou negando.
São cinco em
número: a perícia, o conhecimento científico, a sensatez,
a sabedoria164 e o poder da
compreensão [intuitiva]. De outra
parte, tanto a
mera suposição quanto a opinião podem envolver-
-nos em falsidade.
Ora aquilo que é o conhecimento científico torna-
se claro quando é
necessária uma expressão rigorosa dos fenómenos
e não basta um
mero acompanhamento das semelhanças.
IV
Daquilo que pode
ser de outra maneira distingue-se o que é produtível
e o que é
realizável pela acção. A produção167 é diferente da
acção (damos aqui
crédito ao que se disse acerca destas disposições
nos escritos que
já vieram a lume). Assim, a disposição prática conformada
por um princípio
racional é diferente da disposição produtora
conformada por um
princípio racional. Assim, nenhuma das
duas é envolvida
pela outra, porque nem a acção é produção nem a
produção é acção.
Uma vez que a construção civil é uma certa perícia,
pode dizer-se que
é uma certa disposição produtora conformada
por um princípio
racional. Como não há nenhuma perícia que
não seja também
ela uma disposição produtora conformada por
um princípio
racional, nem há sequer nenhuma disposição deste género
que não seja ela
própria uma perícia, segue-se que uma perícia
é o mesmo que uma
disposição produtora segundo um princípio
verdadeiro. Por
outro lado, toda a perícia tem em vista trazer algo
à existência168 . Produzir com perícia significa ver como se pode
produzir alguma
das coisas que podem ser ou não ser. O seu princípio
originador radica
no elemento produtor e não na coisa que
é produzida. Pois,
na verdade, não há nenhuma perícia que se aplique
aos entes que são
ou vêm a ser por uma necessidade intrínseca
nem aos entes que
existem por natureza. De facto, estes últimos
têm o princípio da
sua origem em si próprios. Ora, uma vez que
a produção é
diferente da acção, é necessário que haja uma perícia
da produção, mas
não da acção. De algum modo também o acaso
e a perícia dizem
respeito às mesmas regiões do ser, tal como até
Agatão diz: «A
perícia gosta do acaso e o acaso da perícia.»169
A perícia é,
então, tal como foi dito, uma certa disposição produtora
conformada por um
princípio verdadeiro. Mas a falta de perícia,
por outro lado,
não deixa também de ser uma disposição produtora,
embora conformada
por um princípio falso. Ambas,
contudo, têm como
âmbito de aplicação o que pode ser de outra
maneira.
V
Poderemos, assim,
determinar melhor o que é a sensatez se considerarmos
aqueles que nós
dizemos serem sensatos. Parece ser sensato
aquele que tem o
poder de deliberar correctamente acerca das
coisas que são
boas e vantajosas para si próprio, não de um modo
particular, como,
por exemplo, acerca daquelas coisas que são boas
em vista do
restabelecimento da saúde, ou da obtenção de vigor físico,
mas de todas
aquelas qualidades que dizem respeito ao viver
bem em geral. Uma
indiciação disto é dada pelo facto de, ao falarmos
daqueles que são
sensatos, dizermos que são capazes de calcular
de modo correcto a
forma de chegarem a obter um certo objectivo
final sério, fim
este que não se encontra entre os produtos de
qualquer perícia.
Assim, aquele que
delibera é alguém absolutamente sensato.
Porque ninguém
delibera acerca daqueles entes que não podem
nunca ser de outra
maneira, nem acerca daquelas coisas sobre as
quais não tem o
poder de agir. Assim, se o conhecimento científico
é capaz de
demonstração e se, por outro lado, não há demonstração
dos princípios
daqueles entes que podem ser de outra maneira
(precisamente
porque neste horizonte toda a alteração é admissível),
e se, finalmente,
não é possível deliberar-se acerca daqueles
entes que existem
por uma necessidade intrínseca, então, a sensatez
não pode ser nem
um conhecimento científico, nem uma perícia.
Em primeiro lugar,
não pode ser conhecimento científico porque
o que acontece no
horizonte da acção pode ser sempre de outra
maneira. Em
segundo lugar, não pode ser uma perícia porque o género
da acção é
diferente do género da produção. Resta, então, que
a sensatez seja
uma disposição prática de acordo com o sentido
orientador e
verdadeiro em vista do bem e do mal para o Humano.
O fim da produção
é diferente da produção do fim; mas o fim da
acção não poderá
ser diferente da própria acção. Na verdade
o próprio agir bem
é um objectivo final.
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