12ª aula -- § 29 SuZ
Introdução: A aula versa sobre aquilo a que Kant
chamaria a doutrina transcendental dos elementos -- exposição do modo
fundamental como se constitui o nosso acesso. É por isso a continuação da aula
passada.
Contraposição da pura perantidade
(vorhandenheit) e aquilo que está à
mão.
Em causa n ão está apenas a
oposição entre o categorial e o existencial, como bolhas diferentes e
independentes, mas ao mesmo tempo identificar as diferenças e também perceber
de que forma é que é no horizonte da existência que as próprias categorias são
interpretáveis..
Em causa não estão dois
horizontes de sentido que se podem catalogar ao jeito das descobertas científicas,
que permitem algo completamente novo num isolamento temático do que é a
existência, mas principalmente os modos de acesso que põem à mostra por um lado
o conteúdo categorial e por outro o existência.
A ideia o εἰδός, a percepção,
a intuição, o que é sintético a priori,
a relação imediata com determinado conteúdo VS. o acesso a conteúdos existências.
Uma ιδέα, uma percepção clara e distinta, uma
intuição, não podem ter acesso ao horizonte existencial. Nós não conseguimos ter uma
percepção clara e distinta no horizonte existencial...os fenómenos existências
não se compreendem nesse modo de acesso.
Heidegger tenta explicitar a
natureza específica do acesso no plano categorial e qual a natureza específica do
acesso no plano existêncial.
§29 Das Da-sein als Befindlichkeit
(O ser o aí como situação de
encontrar/ como a situação do encontrar-se)
Há uma espécie de compreensão do que é este
"nos acharmos" -- nós sabemos como estamos a partir da vivência das
diversas situações em que nos encontramos desde sempre. É o que está implicado
na pergunta "como é que vais". Em causa está o facto de estarmos já
numa situação de abertura. Não há um facto que nos dirige para esse acesso,
como uma forma de intuição existencial. Pelo contrário nós estamos sempre já a
medirmo-nos no termómetro existencial -- nós sabemos e experimentamos sempre
como nos encontramos (com ou sem consciência disso). E isso não envolve nenhuma
análise focada de um sentimento específico ou qualquer coisa do género, mas a
algo que nos acompanha. A estrutura complexa da forma como nos encontramos aí não corresponde a um ponto, não tem
uma estrutura pontual -- é, pelo contrário, uma experiência sempre da vida toda ao mesmo tempo, uma
experiência maciça de estar a viver aí, naquele estado. Há uma avaliação
complexa que não é instantânea, mas também não é numa perspectiva de balanço, é
sim um balança cujos critérios não estão explicitados, mas nos permitem
perceber se estamos bem ou mal, se estamos bem dispostos ou mal dispostos, etc.
Corresponde a uma espécie de Bloomberg que mostra uma ideia de compreensão
disposicional da vida, em que estamos a subir na bolsa, ou a descer, ou
estáveis lá em baixo, estáveis lá em cima, etc... E nós não sabemos todas as
variáveis que determinam aqueles valores. A análise é, neste sentido,
fluvial: do tempo e dos rios, com
linguagem meteorológica -- temos sempre em vista a metáfora fluvial para
descrever as nossas disposições: esta é uma compreensão clara mas que não
acontece devido a uma percepção clara e distinta. Uma percepção clara e
distinta não me permitiria entender como é que está o outro . Pelo contrário,
nós estamos sempre numa óptica de resolução que permite interpretar -- Ex.
quando eu vejo uma amigo e antes de ele dizer alguma coisa eu já sei que se
passou alguma coisa.
Então qual é a diferença
entre o (sich) befinden e hinsehen?
Identificação de conteúdos de
acesso categorial:
Uma percepção abre para
conteúdos susceptíveis de serem percepcionados. O meu quarto não está a ser
percepcionado, mas pode ser se eu for lá ver. Este é o campo da percepção clara
e distinta -- eu identifico conteúdos de serem percepcionados e que me permitem
identificar estruturas reais.
O segundo ponto tem a ver com
a natureza formal do contacto, eu interpreto as percepções já segundo a
natureza do contacto. Nós ouvimos um conteúdo de repente, mesmo que ele esteja
a tocar a tarde inteira -- ele é destacado do campo de fundo em que se encontra
e passa a estar saliente (Ex. o barulho das obras quando paro de estudar). A
percepção anula a diferença dos acontecimento na φύσις, mas depois pega nuns e
mantém-nos à tona. Nós conseguimos mergulhar nuns e noutros por esforço, ignorando
outros.
Mas pode existir também uma
tentativa de anulação do acesso perceptivo (ex das pessoas a sussurar na
biblioteca).
A que é que corresponde o hinsehen? -- os conteúdos impõem-se, mas
existem outros conteúdos que podem ser destacados de tal maneira que esse
destaque depende de um esforço de disponibilidade de acesso.
Tanto na percepção como na fantasia(φαντασία), o que nós
percebemos é que eles são conteúdos reais, porque ambos existem no mundo e são
conteúdos reais. O conteúdo de uma coisa pode ser o conteúdo de uma coisa que
existe e pode ser o conteúdo de uma coisa que não existe (Ex. pessoas que já
morreram) -- eu posso descrever uma inexistência de conteúdos reais. Posso
ressuscitar mundos, por exemplo, trazê-los à presença pela fantasia (φαντασία) -- e eles são reais, são conteúdos de coisa (têm
cheiro, têm cores, etc...), categorialmente eles são reais. As descrições da
Alice no País das maravilhas são descrições de conteúdos reais -- ou seja, eu posso descrever
de tal forma que outros podem perceber; mesmo que não existam no mundo, são
variações anómalas da natureza.
(Mas existencialmente não se
pode dizer que são reais, porque se trata de uma modalidade -- o conteúdo
existencial não é um quid. a forma do
conteúdo é existêncial, mas a forma não é real. A perspectiva existencial pode
estar a colorir o real, mas ela não é um conteúdo, é a forma dos conteúdos. )
No plano categorial a praia
da infância é a praia da infância geográfica, transferível e traduzível de uns
para outros, e não a praia da minha infância, é um conteúdo real que não
corresponde à praia da minha infância do poto de vista da minha biografia e da
minha existência
Heidegger fala depois da befindlichkeit, e refere as Stimmungen (Stimme tem a ver com voz, com a vibração,
até com a afinação de instrumentos).
Sentimentos, afecções, impressões (que as
pessoas deixam)-- não é só o conteúdo, mas o conteúdo e a forma como esse
conteúdo nos afecta.
Quando perguntamos "como tem passado?" estamos a
perguntar pela natureza específica do modo como se tem passado. Tem a
ver com estados de alma, com explosões maciças de estados de alma. Nós podemos
isolar o âmbito existencial através de determinados vectores, podemos falar de
emoções, etc...mas o decisivo é que esses acontecimentos são como que
organismos vivos ("um sentimento nasce, cresce e morre.."). Um
sentimento, um estado de espírito, tem um impacto que pode ser fulminante,
aparecer do nada: podemos ser fulminados por um sentimento, por um estado de
espírito (ex. desilusão amorosa fulminante, etc). O ponto é que nós podemos ser apanhados
por nós numa situação que não esperávamos. Existem formas de acontecimentos
que têm a ver com uma forma de despertar para o estado em que nos
encontramos. É uma forma de acontecimento que não é real, mas é tão eficaz
que nos afecta realmente. Não passa a estar na realidade, mas tem um impacto em
nós, nós damos por nós nessa situação, de tal forma que eu posso estar numa
festa e de repente haver algo que me tira da festa, e a partir daí eu já não
estou lá...(ex. Posso receber uma mensagem que me deixa preocupado e nada na
festa se alterou, não alterou a realidade, mas ainda assim tudo está diferente
-- é completamente irreal, mas é eficaz, surte efeito. Quem está de fora desta
disposição não percebe nada do que se está a passar para mim, não pode
perceber).
Há conteúdos reais, irreais,
eficazes e ineficazes
O que surte efeito, o eficaz,
é de natureza formal -- pode ser real ou irreal, mas altera e
metamorfoseia a realidade no seu todo.
Neste sentido, percebe-s que
os πάθη correspondem a formas de afectação. A forma de acontecimento que
corresponde ao nosso trânsito na vida, a forma como passamos, o que se passa.
Nós estamos num acontecimento que está a passar-se. Ex, quando estamos na
presença avassaladora de uma paixão, ou a presença igualmente avassaladora da
ausência repentina de uma paixão. Eu posso perceber o que é saltar de
paraquedas, mas eu não estou lá, não passeio por isso, tal como uma pessoa pode
descrever a vida toda e eu não estou "nos sapatos dela" (Ou posso
estar, Ex, posso estar na vida de um persoagem de um livro que leio, sofrer o
que ele sofre, sentir o que ele sente; em suma, estar a viver a vida dele).
O que é relevante numa
biografia não são as datas e as coordenadas geográficas, mas as fases da sua
vida, o que se passou na vida dele, e é por perceber esses pontos de
acesso disposicionais, pelos quais ele passou, que percebemos quem ele foi -- é
isso que está na ideia de gefühl, ou na ideia de emoção (ex movere, mover para fora de
si).
Assim, podemos também compreender o outro como uma forma de abertura
disposicional. O humano como cata-vento sensorial. E isso não é
real, não tem categorias reais, mas torna-nos completamente expostos. A
existência tem de lidar com os outros e com as agressões dos outros e das
nossas agressões a elas, de os outros nos ajudarem e de nós os ajudarmos, etc.
O humano lida consigo e por isso com a sua sensibilidade, e depois pode-se
constituir um adormecimento dessa sensibilidade, ou o contrário.
É pela possibilidade de sentirmos sentimentos que podemos ficar
esmagados por uma paisagem -- nós não nos estamos a expor à determinação
categorial da paisagem, mas a uma sensação, a uma impressão -- a nossa relação a
tudo é de natureza sentimental (mesmo à ciência), e por isso não é real,
mas é eficaz. Essa disposição é agente de conteúdos. É por isso que
vamos ver o por do sol, porque o por do sol não é o por do sol.
O sentimento é a exteriorização absoluta de um interior. Tão forte que me pode mesmo fazer
mudar de casa (Ex. eu posso sair da casa onde vivi com a ex namorada porque a
casa está cheia dela e eu já não suporto ver essa presença exterior de algo
interior, e isso faz-me mesmo mudar de casa, apesar de a estrutura real da casa
estar exactamente igual).
Se compararmos um sentimento com uma percepção -- nós não temos
percepções de sensações. Nós não temos percepções claras e distintas do que
está a acontecer. O problema é pensar a relação inversa: será que o sentimento
já está a marinar na percepção? Será que há percepções a-sentimentais? Para
ter uma percepção eu tenho de estar aberto a uma percepção clara e distinta, e
essa abertura constitui já o âmbito sentimental.
Ex.. A análise da teoria (θεορία) por parte
de Aristóteles, análise que Heidegger cita, refere que a teoria só se abre quando se está no
sossego. Os homens começaram a filosofar quando tiveram tempo livre (no Egipto).
Os momentos da teoria pura, de tensão cognitiva contemplativa, do estar a ver (θεορία) só podem acontecer se tivermos disposição
para ver -- se não tivermos disponibilidade para a perspectiva teórica ela não
se constitui (ex. se tiver fome não faço metafísica). Tem de haver uma
disponibilidade disposicional para a teoria pura.
Pelo contrários, nenhuma percepção pode dar para o acontecimentos
sentimental porque ela torna objecto o que não pode ser objecto -- a situação e
a disposição deixa de ser disposição, deixa de ser sentimento se eu a tornar
objectiva -- eu estar a estudar o medo não tem nada a ver com o sentimento do
medo; aliás eu só consigo estudar o medo se não estiver com medo. Quando há
medo há uma perturbação que não permite uma análise perceptiva clara. E a
percepção não pode nunca mostrar de forma pura o que aconteceu quando tive medo
e fugi.
O que acontece no medo e na paixão é que eu me torno exposto e passivo
relativamente a um agente exógeno que me comanda e passa a ser eu. Do mesmo
modo, para fazer teoria eu tenho de estar numa determina situação (aquilo que
Wittgenstein descrevia como o ser levado -- quando estou a estudar estou a ser
levado porque há uma abertura disposicional para estudar esse conteúdo
teórico). Mas o olhar teórico não consegue captar o conteúdo sentimental porque
põe aquilo que só pode ser vivido por um "eu" num "isso".
Quando eu me estudo, não me estudo como "eu", mas como
"isso" que eu estou a ver, que está perante mim (θεωρία). E do mesmo modo, se não houver abertura para
o modo de ver teórico eu não começo nunca a estudar um assunto (Ex. das manhãs
em que não consigo por nada começar a estudar, "não estou para lá
virado"). Eu não consigo estudar o tédio se estiver entediado, se estiver
entediado não vou começar a estudar, mas se eu estiver só na perspectiva
perceptiva e teórica eu não estou a sentir tédio, mas tenho o tédio como um objecto distante de mim. E como resolver
isto? Como ter uma margem de manobra no meio disto? Como conseguir estudar isto
sem perder sempre algo?
Não se trata da acentuação que Descartes faz da racionalidade nem da
inversão que Nietzsche faz para acentuar a sentimentalidade; mas perceber que o
aí tem formas de abertura que podem
abrir mais para o categorial e mais para o existencial, mais para a
racionalidade e mais para as disposições.
A forma como estamos lançados no mundo é determinada por disposições. Há
conteúdos percepcionáveis e conteúdos que não estão no campo perceptivo, mas
quando se trata de disposições elas invadem o mundo inteiro -- o tédio é um
clima que cai sobre o mundo inteiro ao mesmo tempo, de tal forma que os conteúdos
percepcionáveis estão tingidos pela minha disposição.
A disposição quando deflagra não tem a natureza da espacialidade, mas da
temporalidade, e espalha isso pelo mundo a
priori.
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