10ª aula 11.4.2012
World.
Heidegger, SZ, §§12-15.
In-der-welt-sein [ser
(em)-o-mundo]
Analítica existencial temporal do dasein -- existenziale temporale analytik des da sein(s)
Análise do mundo e da estrutura fundamental do
ser no mundo. O objecto da determinação analítica é o dasein.
§9 - aquele ente que está em análise somos nós
de cada vez, o ser desse ente é sempre, de cada vez, o meu. No ser deste ente,
este ente relaciona-se sempre com o seu ser.
Aquilo de que trata a Analítica existencial
temporal do dasein (= filosofia) não
é nem o eu nem o entendimento, nem o espírito, nem a lucidez, mas é aquilo que
eu digo ser eu próprio, aquilo que eu de cada vez digo ser eu próprio. A
análise deste eu que eu digo ser de cada vez é configurado ontologicamente como
ser (Sein).
Isto pode ser compreendido pelo advérbio je. Este significa continuamente, mas
significa também sempre -- a ideia
continua da expressão "de cada vez". Pode acontecer que nós de cada
vez, continuamente, não sejamos nós próprios, pode até dar-se o caso de as
circunstâncias em que nós dizemos ser nós próprio serem estranhas à forma como
a maior parte das vezes nos encontramos a ser.
O que se pretende é a análise complexa de como
nos surpreendemos a ser. O modo como nos relacionamos com nós próprios não é um
modo teórico com uma configuração, mas corresponde às circunstâncias em que na
maioria dos casos damos connosco a ser.
O objecto de referência da pergunta "como
vamos" não tem a ver com a perspectiva teórica que permite enxergar como
vou. A perspectiva teórica tem sempre vistas curtas que não conseguem a abarcar
o que acontece quando dou comigo.
A circunstância em que damos por nós na vida é
justamente a de dar por nós na vida, a surpresa de já estar a ser. Exemplo de
acordar -- quando acordamos damos já com o mundo a ser, "ligam-se as luzes
todas ao mesmo tempo". e nós não acompanhamos esse momento de despertar:
quando percebemos já estamos despertos, nunca apanhamos o momento de despertar,
já estamos em contacto com tudo quando acordamos, quando percebemos que
acordamos, no fundo, já estamos acordados. O modo como nós damos por nós...
O fundamental não é o objecto, não é o
conteúdo, mas a forma de relação a esse conteúdo. Eu sou um modo de estar em
contacto comigo. Nós descobrimo-nos a nós não no exterior perceptivo,
mas encontramo-nos numa maneira de ser, damos connosco numa maneira de ser, e
não num conteúdo. O clima peculiar não é exterior, mas uma forma de compreender
tudo que é completamente interior. Aquilo de que estamos a falar quando nos
referimos à vida é aquilo de que somos portadores -- como se trouxéssemos o
mundo às costas, e é nesse horizonte que tudo se passa. O horizonte é o
princípio onde tudo acontece ao mesmo tempo -- o aí (da). Eu estou cá
-- ich bin da -- quer dizer que para
onde vou levo um horizonte estruturante que indexa tudo o que acontece. Tem um
valor adverbial. Se eu estiver cá só
estou cá por estar aqui. A forma como os pronomes pessoais estão distribuídos
pelos advérbios. Tem a ver com a ideia de "estou aqui" (a prestar
atenção, por exemplo) ou quando a conversa pesa e começamos a pensar noutras
coisas dizer "não estava cá". O cá não é o sítio onde estamos
incarnados: eu posso fazer uma viagem até ao Algarve e não estar lá ao volante,
estou a guiar mas a pensar no dia anterior.
Esse cá é o horizonte onde eu estou. Esse cá é
uma geografia completa de sentido -- quando estou a ler estou lá.
Claro
que eu posso depois "acordar" porque toca o telefone, claro que há um
contacto perceptivo e de resolução prática da vida que se pode impor, como
travar quando não estou a pensar na estrada mas estou ao volante.
São os advérbios que permitem explicitar o ser
e o estar. As formas complexas dos verbos explicitam isso que não tem
complementos. As formas de perceber que não estamos aí é pela compreensão de
que não estamos lá. Quando estou a ir de férias estou já lá onde vou chegar. Há
uma diferença entre o sítio onde estamos e o sítio com que estamos a sonhar,
mas nós estamos mesmo lá -- eu fico mesmo com água na boca quando penso em
comida.
Tem a ver com
a forma peculiar de abertura que abre para aquilo que eu estou a ser. O
que é que estabelece o contacto? Qual é a origem e proveniência? Qual é o ser (Sein) que configura este ente? É o
abrir-se e o fechar-se. É o abrir e o fechar da porta é que configuram a porta
-- são os infinitivos --, e não o ser rectângulo e estar numa parede. A forma
que configura o ente que eu sou é o do ir nas horas. A analítica do dasein visa estudar as situações em que
nos encontramos sem darmos por isso. A pergunta "porque é que isto me
acontece" só é possível porque estou cá. O mundo é a pista de aterragem
onde se dá esse contacto em que eu venho a mim.
Há uma ideia complexa de nós nos relacionarmos
com o poder ser -- a forma como eu me encontro está relacionada com o horizonte
de sentido que nos dá um contexto de interpretação: "estou a chegar
lá" ou "ainda falta muito". A nossa forma de compreensão das
coisas tem por isso a ver com expectativas.
A forma de estarmos nas coisas tem a ver com o ser ou não ser para nós, com o
chegarmos a horas ou chegarmos tarde às coisas (Ex. comecei tarde de mais neste
desporto; comecei cedo de mais a levar qualquer coisa a sério). Isso corresponde a uma avaliação possibilidade
pelo a ser da vida que me permite identificar (fantasiosamente ou não) o que eu
espero vir a ser e não consigo ou consigo. O modo em que nós nos temos permite
relacionarmo-nos com as hipóteses de ser.
O problema é que há apenas uma fora de vida
única para cada um -- há apenas uma possibilidade de cada um ser. Uma pessoa
pode ter tudo na vida e ainda assim não ser, e o contrário também é válido. O
que está em causa é a possibilidade de vencer na existência. O problema é que
não há regras para esse jogo. E depois há frustração e êxito. O ponto é: como é
que eu sou o próprio? Como é que posso perceber o meu projecto vital? Tem a ver
com a noção complexa de termos um livro de encargos. Nós temos um livro de encargos
relativamente a nós próprios. Este ente somos nós próprios; somos nós próprios
na medida em que estamos a coincidir com aquilo que seremos na execução desses
encargos. Nós somos mobilizados para nós, ou para deixar de ser. Mesmo que não
encaremos sempre a possibilidade radical de sermos o que somos de raiz, há uma
relação desde sempre com aquilo que nós somos desde que acordámos pela primeira
vez. A referência de mim a mim é uma referência aquilo que se estica pelo
tempo. Eu não sou o ponto que se relaciona estigmaticamente de mim a mim, mas a
obtenção da transparência com a forma da finitude temporal. Mesmo que
vivêssemos para sempre estaríamos sempre na relação com o tempo -- o projecto
fundamental é de extensão. E nessa
extensão eu estou sempre em tensão para mim, na expectativa de ser o próprio.
As expectativas regulam este modo de nos relacionarmos connosco. Nós estamos
obrigados a ser alguém, a ser o próprio com o qual estamos em tensão e ainda
não somos, ou já fomos, ou somos. Estamos em constante avaliação dos
cumprimento ou não cumprimento das possibilidade e expectativas.
Este
ente não está bem aqui na perspectiva do "agora" (ensanduichado entre
ainda não e já não), não é uma perspectiva estanque (não ser no tédio ou na
angústia). Não é um cogito hic et nunc
esse, pois esse é uma mera abstracção, que é vivida como um enclave entre o
que já não é e o daqui a nada, que não é ainda. A forma como instanciamos "agoras"
e "aquis" resulta de uma dilatação até a eternidade de todo o tempo
do mundo e todo o espaço do mundo (nunc stans -- um agora que está de pé para
sempre). O que nós temos é uma ideia de totalidade, o tempo em que nós vivemos
é todo o tempo do mundo, porque quando eu vivo uma parte do dia eu já estou em tensão
com tudo o que vem no tempo futuro, bem como uma relação com tudo o que
está no tempo passado.
Este no ser deste ente, este ente do ser
relaciona-se sempre com o ente que eu sou, tem que ver com esta presença
horizontal destes horizontes em que me encontro. O eu é qualquer coisas que se
dá para além do tempo de vida. Nós estamos continuamente numa tensão
relativamente ao que está para ser. Temos uma relação com o limite. Há uma
tensão com o futuro a haver. A relação que temos com nós próprios é uma relação
com o "a haver". E ao mesmo tempo é uma relação de gerundivo -- "temos
de ser". O ponto fundamental é que a relação com o meu ser não é uma
relação com todos os momentos que eu já fui mas na qual todos os momentos que
eu já fui são aqueles que eu terei até ao momento da minha morte: aquilo que eu
fui na infância ultrapassa-me e está a minha frente. O meu eu é determinado
pela tensão que eu hei de ser. A minha vida é determinada pela minha relação
com o futuro. O a "a ser"/"a haver" corresponde ao sentido
do ser do ente que eu sou. tenho de perceber a natureza do "a haver"
do que estou a embarcar -- "o que é que vai acontecer daqui a vinte anos
se eu continuar nesta rota?" -- uma relação que eu tenho comigo
determinada pelo curso da rota na qual eu embarquei.
O ponto tem que ver com a diferença entre o
que eu sou e o que eu posso ser, que constitui uma pressão relativamente ao que
eu sou -- são estas possibilidade que criam tensão com aquilo que eu sou.
§9 -- " Und
Dasein ist meines wiederum je in dieser oder jener Weise zu sein ..."
o meu ser é a sua possibilidade mais extrema
-- eu só sou se for a possibilidade mais radical que a vida me dá a mim.
" Dasein
ist je seine Möglichkeit und es »hat« sie nicht nur noch eigenschaftlich als
ein Vorhandenes "
O que eu sou é
definido pela possibilidade. É justamente isso que me define a mim. É isso que
define a minha relação entre aquilo que eu sou e a minha vida a ser. A
dificuldade é que a vida não está feita à nossa medida, e somos nós que temos
de fazer a vida à nossa medida para podermos ser. O que está em causa é o clima
peculiar em que nós podemos ser -- a nossa maneira de viver a existência
corresponde a forma de nós podermos ser e para podermos ser temos de ir por aí
e criar o mundo onde podemos ser isso. De tal forma que alguém compreender
alguma coisa é ser essa coisa, se ele não foi então não compreendeu. Ex. do
Fausto de Goethe.
Qual é a forma
peculiar de nós sermos com outros? qual é a forma peculiar de nós sermos
connosco?
A dificuldade tem
a ver não com uma perspectiva teórica, mas pelo facto de compreendermos uma
possibilidade ao sermos essa possibilidade.
É neste sentido
que Heidegger fala da autenticidade. Ser eu corresponde a preencher o tempo de
acordo com uma hierarquia que nos faz ser nós. Como é que configuro o próprio
de mim? por essa hierarquia? Em que circunstâncias é que eu sou eu? E em quais
é que eu estou alienado? Ex. dos divertimentos: estamos embalados e estamos a
ir nas horas mas não estamos numa agenda do próprio. Esse é um caso de
inautenticidade.
Então em que
circunstâncias é que eu estou em contacto com essa possibilidade radical do
próprio? Ou seja, em que circunstância é que eu estou em contacto comigo?
A radicalização da filosofia moderna na transcendentalidade
de Kant ou na Fenomenologia de Husserl, a radicalização de Descartes, do eu a
ver-me a mim no mundo não corresponde ao modo como nós nos achamos, não é a
perspectiva em que nós nos encontramos. Isso vê-se nas situações pragmáticas,
nas quais as percepções são feitas à base de interpretações dadas por
motivações e horizontes de sentido. O modo de estar na vida não é o da
reflexão. Só é quando algo se constitui como objecto de cuidado. Uma forma
radical de nos relacionamos connosco é aquela pela qual nos relacionamos com as
coisas que nos apoquentam.
O outro ponto tem
que ver com o facto da compreensão daquilo com a qual nos preocupamos não tem
nada a ver com conteúdos perceptivos -- o sujeito transcendental não se
apoquenta --, nós não percebemos como é que nos encontramos através de uma
compreensão perceptiva. Nós somos à
escala mundial, ao ponto de o tempo ser pensado à escala da toda a
temporalidade. O modelo com que Heidegger trabalha é o modelo da identificação
de janelas de oportunidades (pode criar ou ver oportunidades) que ou são
aproveitadas ou não são aproveitados. A forma como vamos ao mundo é dada por
uma ou duas ocasiões -- a possibilidade de pressão que cria a oportunidade pode
ser única. É uma análise de kairologia
(identificação de oportunidades). Só há relação com alguém ou com Deus ou com o
que for se houver uma abertura que se não fosse aberta não teria sido isso. A
vida é dada por todas as ocasiões aproveitadas e também por todas as ocasiões
que não foram aproveitadas.
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