Kant
a) O
percurso por Kant incide sobre a compreensão do projecto de uma filosofia transcendental. Partimos da
compreensão tácita mas não completamente esclarecida ou compreendida da ideia
segundo a qual a filosofia de Kant é transcendental. O seu tema e região de
questionamento é a razão em geral. A compreensão da ideia da filosofia
transcendental como uma filosofia que tem a razão como tema significa, antes de
mais e à partida, compreender
possibilidade do isolamento da razão enquanto razão. Este trabalho de
isolamento da razão é o terminus ad quem
do movimento crítico. São as suas consequências que procurámos seguir, isto é,
para já as determinações de plano da razão:- a razão pura teórica ou
especulativa; a razão prática e a razão técnica.
Em qualquer das
manifestações da razão mostra-se uma raiz comum.
Na razão teórica procura ver-se o modo como o objecto
nos afecta. E um objecto afecta-nos na medida em que estiver já desde sempre
aí. Afecta-nos a partir da própria intuição. "Diese findet aber nur statt, so fern uns der Gegenstand gegeben wird",
e tal é possível, apenas na medidda em que um objecto "das Gemüt auf
gewisse Weise affiziere", KrV, B
33/A 19. Quer dizer, mesmo no nível transcendental, aparentemente mais ínfimo,
o da mera intuição, dá-se já o facto de haver uma primeira transcendência. A
intuição transcende o objecto que a afecta, é-lhe sintético, como poderemos
ver. Determinar este facto é já uma transcendência da experiência que terá de
se legitimar. Mas o Gemüt tem de ser
estudado na sua potência não apenas de ser afectado, de ser bombardeado pelos
objectos, mas também de se comportar activa e espontaneamente relativamente à
experiência.
O mesmo se passa na versão prática da razão: “…in einem
pathologisch-affizierten Wille”, KpV.,
A35. Tudo quanto tem a forma do Gefühl da
Lust e da Unlust é desta natureza. O plano analítico que incide sobre o
horizonte prático procura “dartun, daß
reine Vernunft praktisch (…) den Willen bestimmen können (…) für sich, unabhängig von allem Empirischen,
Ibid., A72.
O mesmo na faculdade de julgar o
belo e o fim da natureza. No §5. da UK podemos ler que o agradável (das
Angenehme) é "ein
pathologisch-bedingtes (Anhreize, Stimulus)". Mas o belo, Das schöne, "ist das, was ohne Begriffe, als
objekt eines allgemeinen Wohlgefallens vorgestellt wird". Quando isto
acontece, "der Urteilende fühlt sich völlig frei, UK, B17". Para lá das determinações patológicas 'agradável',
'desagradável', os quais são sentimentos e, por isso, afectações patológicas, a
determinação 'belo' corresponde a um ponto de vista que excede, de todo em
todo, a experiência determinada de um modo meramente passivo.
b) As
três críticas correspondem, assim, à ideia segundo a qual a Filosofia é o
sistema do conhecimento da razão através de conceitos. Destes três movimentos
críticos, privilegiámos os dois primeiros. São eles que operam a distinção
entre filosofia da natureza e
filosofia dos costumes, tendo, no
entanto, em vista que o sistema da filosofia apenas difere. A metafísica
enquanto a transcendência do campo da experiência é o ponto de vista cujo fim
último está orientado para a resolução das tarefas da razão pura. Uma tal
resolução é a decisão da possibilidade de responder às perguntas levantadas
pela razão. (“Die Wissenschaft aber,
deren Endabsicht mit allen ihren Zurüstungen eigentlich nur auf die Auflösung
derselben gerichtet ist, heißt Metaphysik.”, KrV, B7, A3.) O seu dar-se traz
consigo a necessidade de se constituir a decisão, krinein, do poder ou não poder da razão para a execução confiante
de uma tamanha empresa (“Prüfung des Vermögens oder Unvermögens der Vernunft
zueiner so großen Unternehmung,” ibid.).
Podemos, portanto, ver que, se há um interesse no ideal da razão, o qual
constitui uma expectativa a preencher, a de responder às perguntas que a razão
levanta e pelas quais somos afectados, por outro lado, a despeito da
heterogeneidade das questões, é esse mesmo interesse que lhes dá uma mesma
unidade de sentido. Que nos orienta para elas. Há um mesmo fim último.
g) O
tema da ideia é a totalidade absoluta das séries de condições, que excedem a
situação mais ou menos imediata em que de cada vez nos encontramos. A ideia de
totalidade absoluta mais problemática é a que me expõe à possibilidade
problemática da esperança (Hoffnung), na medida em que uma tal ideia é não
apenas absolutamente sintética relativamente às aparições e séries de aparições
do mundo natural, como também é sintética relativamente ao cumprimento do meu
dever e à constituição de um mundo moral. Pretendemos, agora, ver mais em
detalhe esta pergunta. “A pergunta, a
saber, se fizer o que devo, o que é que eu posso depois esperar? é ao mesmo
tempo prática e teórica, de tal modo que o prátcio é apenas um fio condutor
para a resposta à pergunta teórica, e se esta vai muito alto (a saber excede
muito o campo da experiência), conduz à pergunta especulativa” (Die dritte
Frage, nämlich: wenn ich nun tue, was ich soll, was darf ich alsenn hoffen? ist
praktisch unnd theoretisch zugleich, so, daß das Praktische nur als ein
Leitfaden zu Beantwortung der theoretishcen, und, wenn diese hoch geht,
spekulativen Frage führet, KrV., B833.).
A direcção do comportamento transcendental do ter esperança (hoffen) é a da bem-aventurança
(Glückseligkeit). Importa aqui não
nos deixarmos levar pela linguagem teológica kantiana. A pergunta pela
felicidade só pode ser entendida a partir da direcção do hoffen. Ter esperança
é uma possibilidade humana que se dirige para o futuro, para um futuro
possível. A possibilidade deste futuro não é, no entanto, a possibilidade de
uma coisa, de uma vivência que se situa no futuro, mas antes é o próprio futuro
que enquanto futuro é esperado, sendo assim o que dá abertura, o campo de
clareira para todas as coisas possíveis à luz desse futuro ao qual podemos
chegar e que chega desde já até nós fundado na esperança. A possibilidade de
ter esperança não pode ser confundida com a possibilidade de ter esperença em
coisas. Ter esperança, ser bem aventurado, ser abençoado signficar poder
esperar simplesmente, estar já aí no
abrir e rasgar o futuro.
Mas há uma possibilidade negativade nos relacionarmos com o futuro. Esse
tipo de relacionamento com o futuro pode ser o do adiamento. O modo como se
está relacionado com o futuro da eternidade no seu bloqueamento, transforma a
possibilidade da espera na possibilidade
do desespero. Ainda sem saber se há ou não futuro, ainda sem saber se há ou
não coisas para serem vividas nesse futuro, há uma interpretação da vida que
declara de todo em todo uma proscrição. A proscrição
não nos veda o futuro enquanto uma dimensão que há-de ser vivida. O que ela nos
declara é que de agora em diante a esperança não existe. O mundo pode muito bem
continuar a ser constituído pelas suas séries naturais de aparição, há um
passado, um presente e um futuro; eventualmente há um mundo moral que eu
constituo em mim na minha relação com os outros,- mas não há nenhum mundo esperado. Eu existirei como coisa ou
como ser moral, mas não terei um futuro feliz, um futuro fértil. A pergunta
pela esperança é uma pergunta que deflagra quando o desespero é o comportamento
possível com o futuro em que não
terei sido o cumprimento do que eu quis. Um futuro desta ordem é o meu passado a priori.
d) É
neste Entwurf e neste plano que temos
que entender os problemas da razão pura. A razão projecta a vida humana na
possibilidade ou impossibilidade de esperar, projecta-se assim num mundo e numa
vida futuras cuja realidade e sentido podem ser apenas fantasmas vazios. Mas é
à luz deste Hang que a razão
desenrola, lança e se multiplica por séries de fases, situadas nas diversas
formas de acontecer metafísico. É decorrente desta situação fáctica onde nos
encontramos, da relação concreta com promessas e ameaças (verheißungen und Drohungen) que temos de pensar também a nossa
relação com eine solche zwechmäßige
Einheit. É esta zweckmäßige Einheit que
torna possível o acontecimento fundamental da razão. Só assim, nesta relação
fundamental com o projecto do sentido de um futuro (para o qual estamos abertos
ou fechados) faz sentido interrogar a conexão entre o ponto de vista teórico e
o ponto de vista prático e os respectivos temas das suas investigações na
especialidade.
A situação em que nós nos encontramos, die Sinnenwelt, a partir da natureza das coisas não nos promete uma
tal systematische Einheit des Zweckes,
porque a sua realidade não pode ser fundada a não ser na pressuposição de um
bem supremo originário, auf die
Voraussetzung eines höchsten ursprünglichen Guts. A dificuldade de obtenção
de um tal propósito resulta da absoluta heterogeneidade e irredutibilidade de
um ente desta ordem ao mundo sensível. "A finalidade no seu grau de
completude máxima, ainda que esteja para nós oculta no mundo sensível, funda,
conserva e realiza a ordenação das coisas" ("vollkommensten Zweckmäßigkeit
die allgemeine, obgleich in der Sinnenwelt uns sehr verborgne Ordnung der Dinge
gründet behält und vollführt, KrV,
B842).
Um tal projecto tem um focus
imaginarius: A função do entendimento é a de “unificar a multiplicidade no
objecto através de conceitos, a da razão é a de, por sua vez, unificar o
múltiplo de conceitos através de ideias, na qual ela põe como objectivo uma
certa unidade colectiva das acções do entendimento." Ibid. Ela dá ao entendimento um uso
regulador (“regulativer Gebrauch”), para dirigir o entendimento para certos objectivos (“um den Verstand zu
einem gewissen Ziele zu richten”), ela abre “uma perspectiva em vista da qual todas as suas linhas directrizes
concorrem para um único ponto. KrV, B673” (in Aussicht auf welches die Richtungslinien aller seiner Regeln in
einen Punkt zusammenlaufen). Este ponto é caracterizado como um focus imaginarius (KrV, B673). É uma Idee. Este ponto não pode ser tido em
vista pelo entendimento. Excede-o de todo em todo. “Está fora dos limites da experiência possível, mas serve para lhe
arranjar [verschaffen] a maior unidade de todas junto à maior extensão de todas”,
KrV, B673. Esta ideia é uma ilusão [Tauschung, Illusion] e ao mesmo tempo
necessariamente indispensável, caso para lá dos objectos que estão diante dos
nossos olhos, também queiramos simultaneamente ver aquela [unidade] que está
muito afastada, atrás das nossas costas, i.e.,
caso também quisermos desviar o entendimento para lá de cada experiência dada,
para um maior alargamento até ao que de mais extremo houver [äußerste]”, KrV,
B673. O que a razão assim procura é a sistematização do conhecimento, a
conexão. “A unidade da razção pressupõe
sempre uma ideia, a da forma de um todo do conhecimento, a qual precede todas
as partes determinadas de um conhecimento e contem as condições que permitem
determinar a priori para cada parte a sua posição e o seu relacionamento com as
restantes. KrV, B674.” Esta unidade é uma unidade projectada, projektierte
Einheit, b 675.
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