13ª aula de Temas de
Filosofia Antiga
Continuação da noção de
carácter.
Antes de entrar em Agripina
interessa ver de que forma Tácito desenvolve uma técnica peculiar de
retrato. Qual é o âmbito que serve de
plano de fundo ao surgimento dos traços das personagens? Como é que a trama
complexa do que está na ordem do dia age sobre as personalidades que são
destacadas? Isso implica uma escolha das personagens que estão a intervir neste
contexto. Em causa está a descrição de vilões ou heróis numa determinada
condição.
A característica fundamental
tem que ver com a introdução da personalidade do individuo na história.
Foca-se uma personalidade e uma história concreta, biográfica. Não se foca os
indivíduos como exemplos e metáforas de uma força mitológica do herói, ou com
uma perspectiva genealógica (a questão do mito fundacional). Pelo contrário, há
uma interacção do individuo com os destinos históricos -- tenta-se perceber a
margem de manobra, ou ausência dela, do individuo no seu contexto, e por isso
com também a da sua história.
Outra nota prende-se com a
tendência de Tácito cristalizar as imagens do indivíduos. Ao ponto de todas as
acções de um determinado individuo terem sempre uma mesma forma peculiar, que é
a do seu carácter. Corresponde a uma forma cunhada que não admite alteração: o
carácter corresponde a um εῖδος
não anulável do individuo, quer na forma passiva de reagir
às situações, quer nas activas. Uma das técnicas para mostrar isto é a
suspeição ou da insinuação. A estratégia passa por alguém deixar escapar uma
palavra que fermenta nos ouvidos da multidão ou nos ouvidos do que é visado. A
forma de intervenção da pessoas têm à partida uma palavra deixada para difamar
ou matar determinada pessoa; pelo que a palavra corresponde a uma arma poderosa
de arremesso (antes do veneno e do ferro há um mecanismo de propaganda que visa
geralemente anular determinada pessoa). Existe, nesse caso, uma lógica da
propaganda.
O ponto fundamental é
perceber se o vilão é sempre vilão, se o indivíduo de carácter é sempre de
indivíduo de carácter, se o acusador é sempre acusador, etc...
Em Suetónio há uma clara
alteração das personagens antes de serem imperadores e depois de serem
imperadores, que são até incompatíveis -- há um alteração completa e não se
consegue perceber se os príncipes eram já monstros e o poder deu azo à
libertação disso, ou se eles foram corrompidos pelo poder. De qualquer modo, há
uma alteração.
Qual é a margem de manobra
para um indivíduo ser de maneira diferente? Será que o monstro está já presente
em tenra idade, mesmo que não se apresente de forma declarada? Assim, o ponto é
saber se manifestações de carácter diferentes refletem uma alteração no
carácter. Ou seja: será que as pessoas mudam?
Outro característica da
análise de Tácito é o facto de quando as pessoas parecem mudar é sempre para
pior. Os bons não cedem e quando vêem que vão ser forçados a ceder suicidam-se.
Os maus não se arrependem, quanto muito sentem culpa. Ex do fim de vida de Tibério.
O que existe é sempre o projecto da projecção de si quando tiver morrido e por
isso a continuidade da sua vida depois da morte -- uma vida levada pelo
critério da validação histórica.
Como o fio condutor dos Annales são os imperadores, isto é mais
fácil de procurar neles a relação complexa entre o momento antes e depois de chegarem
ao poder. Uma alteração do modo de vida antes e depois -- uma alteração severa
das circunstâncias pode levar a uma alteração do modo de ser. A vida pode ser
diferente antes e de pois de um acontecimento. A descrição compulsiva de um ser
que se marca por marcos no tempo da vida, que vive sempre antes e depois dos
acontecimentos importantes, dados em determinadas circunstâncias da sua vida.
Em causa está o agente
histórico. Quer seja na escala imperial, com as repercussões na sociedade, quer
na escala das personagens menores. Ou seja, como Roma é diferente antes de
depois de Tibério, também Tibério é diferente antes e depois de ser
imperador...A pergunta é mesmo se esse critério histórico é válido na
representação do carácter.
Como é que Tácito faz estes
retratos?
Primeiro, ele próprio
introduz as pessoas ao de leve, faz um esboço da sua apresentação -- o
individuo nunca é descrito à cabeça. Não se parte de uma descrição eficaz das
pessoas, mas sim uma introdução geral ao carácter, com traços que têm a ver com
a forma como essa personagem da história é compreendida pelos outros e que
prepara o encontro do leitor com essa personagem. Um exemplo disto é a
apresentação de Popaia, futura mulher de Nero.
Para fazer isto, Tácito põe aquilo
que pensa na boca de uma personagem, desresponsabilizando-se, recorrendo apenas
ao discurso directo para a discussão das fontes. Ele tenta utilizar as
personagens para fazer os juízos, de forma a filtrar subjectivamente o que é
dito. Por exemplo, se ele quer tirar o carácter objectivo da descrição de uma
pessoa põe Tibério a descrever essa pessoa. O que existe na perspectiva de
Tácito é sempre, como entre as personagens, uma insinuação. Quando vemos
Tibério a descrever alguém nós pensamos sempre: "o que é que ele fez a
Tibério?" Quando vemos a descrição de alguém vemos que há fortes
motivações pessoais a tingir essa descrição, em função do que se passou entre
aquelas personagens e do que se passou na vida das pessoa que descrevem (alguém
que está sempre com o pé atrás, por exemplo). Há sempre um psicologia fina, que
mostra personagens de carne e osso, expostas às acções dos outros. É descrita
uma forma radical de exposição ao exterior e aos outros. Em causa está por isso
sempre o fenómeno da motivação. Ou seja, a dimensão da influência de um gesto
ou uma palavra que vem de uma outra personagem importante da nossa vida -- o
modo como somos afectados por aqueles que têm um papel na nossa vida. Deste
modo, Tácito descreve as situações em que as personagens são expostas. A
presença das pessoas umas às outras não tem a ver com a causalidade ou sequer
com a percepção pura. O que nós percebemos é a organização por categorias
existências do carácter dos outros, bem como o reconhecimento de si como susceptível
de exposição aos outros. Em causa está o modo como se é afectado e o modo como
os outros nos percebem como afectados por eles através de categorias também
existenciais.
Existe um plano de fundo da
organização dos conteúdos existências que lhes dão importância, os fazem
crescer e os apagam. A dinâmica da personagem em Tácito é esta: o passado
filtra o que acontece no presente. O presente é dado pela forma peculiar de ver
a vida de uma determinada personagem, que é marcada pelo seu passado.
Tácito diz, ao descrever
os outros por boca alheia, que esse retrato é o modo como a objectividade de
alguém surge de forma subjectiva nos olhos dos outros. É dificílimo ver uma
pessoa. É dificílimo ver o carácter objetcivo de uma pessoa. Ele corresponderia
a um em si praticamente impossível de conseguir, porque é preciso ver que ao
anular os acidentes da sua vida se pode estar a perder aquilo que altera o que
não é acidental nessa pessoa. A avaliação subjectiva que fazemos de uma pessoa
é reificada e ela passa a ser aquilo que nós achamos que ela é -- mas isso pode
ser mal avaliado, pode ser uma suspeita que não tem correspondente na
realidade. O que é que caracteriza uma
pessoa quando não há olhos postos nela?
O que Tácito faz é tornar
histéricos os traços das pessoas que estão a ser vistas. Do mesmo modo, torna
radicais os contextos de exposição.
Em XII,3 - Descrevia
Calígula. Parecia que não havia nada de extremo no do príncipe, nem nenhum ódio
pessoal por alguém, a não ser por opiniões que lhe tinham sido inculcados ou resultassem
de ordens e comando -- Cláudio é descrito como susceptível de ser influenciado,
só era áspero se o virassem para isso. Ele era um indivíduo excepcionalmente
influenciável por mulheres.
Em XII, 1 -- era susceptível
de ser influenciado pelos promotores das mulheres.
Druso, por exemplo, estava
sempre disposto a uma acção violenta (I, 29).
Popaia - tinhas todas as
características em si, menos um espírito honrado (XIII, 25).
Em IV, 1 -- A primeira vez
que aparece Sejano. O seu corpo estava
habituada a todas as espécies de trabalho, o espírito audaz, mas era ao mesmo
tempo bajulador e soberbo, em público fingia pudor, mas no seu interior tinha
um desejo extremo de obtenção de poder (summa
apiscendi libido) e é esse o motivo da sua existência. Frequentemente
utilizava esperteza no agir, e cuidado em relação aos outros. Mas nada disto
era visto pelos outros, porque ele queria o poder e por isso não podia mostrar
isto. É um carácter que nunca é alterado, mas que tem uma complexidade de
manifestações e de expressão de acordo com as circunstâncias. Ou seja, o que
definia o seu carácter era só uma coisa -- a
summa apiscendi libido --, apesar das diferentes manifestações.
Já Tibério joga com a ilusão
para afectar a forma como os outros o vêem -- um mestre a criar na cabeça dos
outros o que ele quer que eles vejam dele (IV,19 e VI,1)(simulatio)
Agripina a Velha, mãe de
Nero, é descrita como ávida de poder, com vícios femininos que a despiam das
preocupações viris (VI, 25).
Messalina, mulher de Cláudio
(XI, 31) -- Quando Cláudio é afastado, ela vai ter segunda núpcias com Sílio.
Ela nunca tinha dado largas tão violentas à sua volúpia. Depois das vindimas
ela simulou a apanha da uva e pôs mesmo as pessoas a pisar as uvas, e a saltar com
vestidos, e estavam todas fora de si. Toda a descrição é influenciada pelas
bacantes. A descrição de uma festa, de uma determinação extrínseca ao corpo,
mas que permite perceber a forma como aquelas pessoas estão numa situação de
desgoverno.
III, 69. A popularidade de Tibério junto das
pessoas, quando abatia os que apareciam como bajuladores. Ele não gostava que
lhe dessem graxa. Também há várias descrições que mostram a sua generosidade.
III, 60. Numa circunstância
em que se discute a jurisprudência em questões de asilo político. Como tem medo
de que a sua decisão afecte a sua popularidade, porque está ainda a fortalecer
o seu poder, Tibério diz que delega a sua decisão para os senadores, utilizando
como pretexto o fortalecimento do senado.
O objectivo dos Annais de Tácito não é, de todo,
assassinar o carácter. Aliás, é a compreensão do carácter e da exposição aos
outros que permite a simulatio, que é
constantemente descrita por Tácito.
VI, 30 -- Tibério achava que
tinha contra si o ódio popular e, por causa da sua avançada idade, percebeu qu
iria manter-se no poder mais facilmente pela reputação do que pela violência (e
é só por isso que não utiliza a violência).
Calígula surge , em VI 45,
como alguém que não rejeitava nada do que Tibério dizia, ainda que estivesse
fora de si. Tinha aprendido a esconder no seu peito as simulações e coisas
falsas.
Descrição de Vitélio -- Histórias III 63 -- uma inércia tão
grande que, se outros não o lembrassem de que era imperador, ele havia de se
esquecer.
Mémio Régulo -- XIV 47 -- era
conhecido pela autoridade, pela constância de espírito, tanto quanto é possível
quando o cume de um imperador faz
sombra a tudo mais. Mas quando
Nero estava circulado por bajuladores, ele terá dito que havia uma única ajuda
para a república, que era Mémio Régulo, mas os outros não tiveram inveja porque
ele tinha uma vida pacata, que não suscitava inveja aos outros.
Nunca sabemos se os retratos
correspondem à realidade. Eles são verosímeis relativamente à forma como
estes indivíduos têm rédea solta para
fazerem o que lhe apetece. A descrição é feita no contexto da sua exposição
radical ao poder.
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