quinta-feira, 17 de maio de 2012

ANTIGA, 13ª sessão. Protocolo (TOMAZ FIDALGO)


13ª aula de Temas de Filosofia Antiga

Continuação da noção de carácter.

Antes de entrar em Agripina interessa ver de que forma Tácito desenvolve uma técnica peculiar de retrato.  Qual é o âmbito que serve de plano de fundo ao surgimento dos traços das personagens? Como é que a trama complexa do que está na ordem do dia age sobre as personalidades que são destacadas? Isso implica uma escolha das personagens que estão a intervir neste contexto. Em causa está a descrição de vilões ou heróis numa determinada condição.
A característica fundamental tem que ver com a introdução da personalidade do individuo na história. Foca-se uma personalidade e uma história concreta, biográfica. Não se foca os indivíduos como exemplos e metáforas de uma força mitológica do herói, ou com uma perspectiva genealógica (a questão do mito fundacional). Pelo contrário, há uma interacção do individuo com os destinos históricos -- tenta-se perceber a margem de manobra, ou ausência dela, do individuo no seu contexto, e por isso com também a da sua história.
Outra nota prende-se com a tendência de Tácito cristalizar as imagens do indivíduos. Ao ponto de todas as acções de um determinado individuo terem sempre uma mesma forma peculiar, que é a do seu carácter. Corresponde a uma forma cunhada que não admite alteração: o carácter corresponde a um εῖδος não anulável do individuo, quer na forma passiva de reagir às situações, quer nas activas. Uma das técnicas para mostrar isto é a suspeição ou da insinuação. A estratégia passa por alguém deixar escapar uma palavra que fermenta nos ouvidos da multidão ou nos ouvidos do que é visado. A forma de intervenção da pessoas têm à partida uma palavra deixada para difamar ou matar determinada pessoa; pelo que a palavra corresponde a uma arma poderosa de arremesso (antes do veneno e do ferro há um mecanismo de propaganda que visa geralemente anular determinada pessoa). Existe, nesse caso, uma lógica da propaganda.
O ponto fundamental é perceber se o vilão é sempre vilão, se o indivíduo de carácter é sempre de indivíduo de carácter, se o acusador é sempre acusador, etc...
Em Suetónio há uma clara alteração das personagens antes de serem imperadores e depois de serem imperadores, que são até incompatíveis -- há um alteração completa e não se consegue perceber se os príncipes eram já monstros e o poder deu azo à libertação disso, ou se eles foram corrompidos pelo poder. De qualquer modo, há uma alteração.
Qual é a margem de manobra para um indivíduo ser de maneira diferente? Será que o monstro está já presente em tenra idade, mesmo que não se apresente de forma declarada? Assim, o ponto é saber se manifestações de carácter diferentes refletem uma alteração no carácter. Ou seja: será que as pessoas mudam?
Outro característica da análise de Tácito é o facto de quando as pessoas parecem mudar é sempre para pior. Os bons não cedem e quando vêem que vão ser forçados a ceder suicidam-se. Os maus não se arrependem, quanto muito sentem culpa. Ex do fim de vida de Tibério. O que existe é sempre o projecto da projecção de si quando tiver morrido e por isso a continuidade da sua vida depois da morte -- uma vida levada pelo critério da validação histórica.
Como o fio condutor dos Annales são os imperadores, isto é mais fácil de procurar neles a relação complexa entre o momento antes e depois de chegarem ao poder. Uma alteração do modo de vida antes e depois -- uma alteração severa das circunstâncias pode levar a uma alteração do modo de ser. A vida pode ser diferente antes e de pois de um acontecimento. A descrição compulsiva de um ser que se marca por marcos no tempo da vida, que vive sempre antes e depois dos acontecimentos importantes, dados em determinadas circunstâncias da sua vida.
Em causa está o agente histórico. Quer seja na escala imperial, com as repercussões na sociedade, quer na escala das personagens menores. Ou seja, como Roma é diferente antes de depois de Tibério, também Tibério é diferente antes e depois de ser imperador...A pergunta é mesmo se esse critério histórico é válido na representação do carácter.
Como é que Tácito faz estes retratos?
Primeiro, ele próprio introduz as pessoas ao de leve, faz um esboço da sua apresentação -- o individuo nunca é descrito à cabeça. Não se parte de uma descrição eficaz das pessoas, mas sim uma introdução geral ao carácter, com traços que têm a ver com a forma como essa personagem da história é compreendida pelos outros e que prepara o encontro do leitor com essa personagem. Um exemplo disto é a apresentação de Popaia, futura mulher de Nero.
Para fazer isto, Tácito põe aquilo que pensa na boca de uma personagem, desresponsabilizando-se, recorrendo apenas ao discurso directo para a discussão das fontes. Ele tenta utilizar as personagens para fazer os juízos, de forma a filtrar subjectivamente o que é dito. Por exemplo, se ele quer tirar o carácter objectivo da descrição de uma pessoa põe Tibério a descrever essa pessoa. O que existe na perspectiva de Tácito é sempre, como entre as personagens, uma insinuação. Quando vemos Tibério a descrever alguém nós pensamos sempre: "o que é que ele fez a Tibério?" Quando vemos a descrição de alguém vemos que há fortes motivações pessoais a tingir essa descrição, em função do que se passou entre aquelas personagens e do que se passou na vida das pessoa que descrevem (alguém que está sempre com o pé atrás, por exemplo). Há sempre um psicologia fina, que mostra personagens de carne e osso, expostas às acções dos outros. É descrita uma forma radical de exposição ao exterior e aos outros. Em causa está por isso sempre o fenómeno da motivação. Ou seja, a dimensão da influência de um gesto ou uma palavra que vem de uma outra personagem importante da nossa vida -- o modo como somos afectados por aqueles que têm um papel na nossa vida. Deste modo, Tácito descreve as situações em que as personagens são expostas. A presença das pessoas umas às outras não tem a ver com a causalidade ou sequer com a percepção pura. O que nós percebemos é a organização por categorias existências do carácter dos outros, bem como o reconhecimento de si como susceptível de exposição aos outros. Em causa está o modo como se é afectado e o modo como os outros nos percebem como afectados por eles através de categorias também existenciais.
Existe um plano de fundo da organização dos conteúdos existências que lhes dão importância, os fazem crescer e os apagam. A dinâmica da personagem em Tácito é esta: o passado filtra o que acontece no presente. O presente é dado pela forma peculiar de ver a vida de uma determinada personagem, que é marcada pelo seu passado.
Tácito diz, ao descrever os outros por boca alheia, que esse retrato é o modo como a objectividade de alguém surge de forma subjectiva nos olhos dos outros. É dificílimo ver uma pessoa. É dificílimo ver o carácter objetcivo de uma pessoa. Ele corresponderia a um em si praticamente impossível de conseguir, porque é preciso ver que ao anular os acidentes da sua vida se pode estar a perder aquilo que altera o que não é acidental nessa pessoa. A avaliação subjectiva que fazemos de uma pessoa é reificada e ela passa a ser aquilo que nós achamos que ela é -- mas isso pode ser mal avaliado, pode ser uma suspeita que não tem correspondente na realidade.  O que é que caracteriza uma pessoa quando não há olhos postos nela?
O que Tácito faz é tornar histéricos os traços das pessoas que estão a ser vistas. Do mesmo modo, torna radicais os contextos de exposição.

Em XII,3 - Descrevia Calígula. Parecia que não havia nada de extremo no do príncipe, nem nenhum ódio pessoal por alguém, a não ser por opiniões que lhe tinham sido inculcados ou resultassem de ordens e comando -- Cláudio é descrito como susceptível de ser influenciado, só era áspero se o virassem para isso. Ele era um indivíduo excepcionalmente influenciável por mulheres.

Em XII, 1 -- era susceptível de ser influenciado pelos promotores das mulheres.

Druso, por exemplo, estava sempre disposto a uma acção violenta (I, 29).

Popaia - tinhas todas as características em si, menos um espírito honrado (XIII, 25).

Em IV, 1 -- A primeira vez que aparece Sejano.  O seu corpo estava habituada a todas as espécies de trabalho, o espírito audaz, mas era ao mesmo tempo bajulador e soberbo, em público fingia pudor, mas no seu interior tinha um desejo extremo de obtenção de poder (summa apiscendi libido) e é esse o motivo da sua existência. Frequentemente utilizava esperteza no agir, e cuidado em relação aos outros. Mas nada disto era visto pelos outros, porque ele queria o poder e por isso não podia mostrar isto. É um carácter que nunca é alterado, mas que tem uma complexidade de manifestações e de expressão de acordo com as circunstâncias. Ou seja, o que definia o seu carácter era só uma coisa -- a summa apiscendi libido --, apesar das diferentes manifestações.

Já Tibério joga com a ilusão para afectar a forma como os outros o vêem -- um mestre a criar na cabeça dos outros o que ele quer que eles vejam dele (IV,19 e VI,1)(simulatio)

Agripina a Velha, mãe de Nero, é descrita como ávida de poder, com vícios femininos que a despiam das preocupações viris (VI, 25).

Messalina, mulher de Cláudio (XI, 31) -- Quando Cláudio é afastado, ela vai ter segunda núpcias com Sílio. Ela nunca tinha dado largas tão violentas à sua volúpia. Depois das vindimas ela simulou a apanha da uva e pôs mesmo as pessoas a pisar as uvas, e a saltar com vestidos, e estavam todas fora de si. Toda a descrição é influenciada pelas bacantes. A descrição de uma festa, de uma determinação extrínseca ao corpo, mas que permite perceber a forma como aquelas pessoas estão numa situação de desgoverno.

 III, 69. A popularidade de Tibério junto das pessoas, quando abatia os que apareciam como bajuladores. Ele não gostava que lhe dessem graxa. Também há várias descrições que mostram a sua generosidade.
III, 60. Numa circunstância em que se discute a jurisprudência em questões de asilo político. Como tem medo de que a sua decisão afecte a sua popularidade, porque está ainda a fortalecer o seu poder, Tibério diz que delega a sua decisão para os senadores, utilizando como pretexto o fortalecimento do senado.

O objectivo dos Annais de Tácito não é, de todo, assassinar o carácter. Aliás, é a compreensão do carácter e da exposição aos outros que permite a simulatio, que é constantemente descrita por Tácito.
VI, 30 -- Tibério achava que tinha contra si o ódio popular e, por causa da sua avançada idade, percebeu qu iria manter-se no poder mais facilmente pela reputação do que pela violência (e é só por isso que não utiliza a violência).
Calígula surge , em VI 45, como alguém que não rejeitava nada do que Tibério dizia, ainda que estivesse fora de si. Tinha aprendido a esconder no seu peito as simulações e coisas falsas.

Descrição de Vitélio -- Histórias III 63 -- uma inércia tão grande que, se outros não o lembrassem de que era imperador, ele havia de se esquecer.
Mémio Régulo -- XIV 47 -- era conhecido pela autoridade, pela constância de espírito, tanto quanto é possível quando o cume de um imperador faz  sombra  a tudo mais. Mas quando Nero estava circulado por bajuladores, ele terá dito que havia uma única ajuda para a república, que era Mémio Régulo, mas os outros não tiveram inveja porque ele tinha uma vida pacata, que não suscitava inveja aos outros.
Nunca sabemos se os retratos correspondem à realidade. Eles são verosímeis relativamente à forma como estes  indivíduos têm rédea solta para fazerem o que lhe apetece. A descrição é feita no contexto da sua exposição radical ao poder.

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