13ª
aula -- 30 de Abril 2012
O que Heidegger pretende é uma
análise das disposições que permite visar o que é fundamental no humano.
Existem Vários textos que só
ficaram disponíveis muito depois da sua morte que visam o âmbito disposicional.
Neles, reforça-se que o fenómeno da disposição é o núcleo duro da analítica
existencial. Assim, surge uma nova possibilidade de fenomenologia que é a
fenomenologia das disposições, que seria a verdadeira fenomenologia.
Um dos volumes importantes
para compreender isto é o de 29/30 (corresponde ao ano lectivo de 29/30).
Lições -- Problemas fundamentais da metafísica: mundo, totalidade e solidão
Num primeiro momento há uma
análise de uma disposição fundamental, não numa tentativa de desenvolver uma
psicologia dos afectos, mas na tentativa de perceber a possibilidade de sermos
uns com os outros. Ele desloca o
problema fundamental do ser para a πρᾶξις.
Assim, por um lado procura a identificação de uma disposição, por outro lado a
identificação do tema da filosofia.
No isolamento e na identificação
de uma disposição está o seu acordá-la -- as disposições têm de ser acordadas.
Na primeira parte há a tentativa de identificação de uma disposição e por isso
o acordar dessa disposição; na segunda uma análise da animalidade (da zoologia
ao modo de Aristóteles). O humano constrói o sentido do mundo, enquanto o
animal é pobre de mundo e a pedra não tem relação com o mundo. A pedra é fechada no seu próprio
acontecimento, mas o animal e o homem estão abertos ao que os rodeia. Mas a
forma de abertura não é igual para os homens e para os animais, nem entre
animas diferentes -- aquilo que é "objectivamente" uma árvore não
pode ser igual para vários animais diferentes.
O animal não habita o mundo, habita nichos, ecossistemas.
Quem habita o undo é o humano. Entra em jogo a consideração do mundo como
perspectiva do humano. O ponto fundamental em causa é a análise do que é que
significa "constituição de sentido" ou "constituição de sentido
da vida" ou "constituição de mundo". Todas estas expressões
visam de algum modo o mesmo. É preciso perceber como é que elas visam o mesmo e
o que é esse algo que é visado de formas diferentes.
De que forma é que uma stimmung (disposição, vibração, etc) nasce,
cresce e morre? O que é que é uma stimmung?
Qual é a natureza do acontecimento das
disposições e qual a natureza da nossa relação com elas?
1º ponto a destruição da ideia
de tema, de assunto que é constituído por abstração relativamente a outros
assuntos. Porque o tema implica sempre a relação entre sujeito e objecto, por
mais que se tente ilidir o sujeito. O ponto fundamental para Heidegger ( de 7 a
23 das lições) visa construir por negação a situação hermenêutica do método científico.
Pretende-se mostrar a relação entre a exigência de método e o facto de a
abertura científica ter exigências ontológicas.
O que se tenta é constituir como objecto o que e estuda. Nós analisamos
os acontecimentos como reportando ao interior de uma pessoa. Na tentativa da
análise de uma disposição a constituição dela como objecto tem já uma
interpretação desse acontecimento mas também da constituição da pessoa que é
portadora da disposição. Em causa está o facto de nós sintomaticamente sabemos
estar uns com os outros -- sabemos ver o que se passa com uma pessoa, e mesmo o
bluff prova disso, porque pressupõe algo que não está a ocorrer. Nós não nos
vemos uns aos outros pela raça, sexo, etc., mas as emoções de que esse outro é
portador. Por isso mesmo pode ser dificílimo descrever alguém que conhecemos
bem: aquilo que vemos neles é um elemento de natureza disposicional. A forma
como os outros nos aparecem não é anatómica. Estamos permanentemente numa
reação à presença dos outros, numa interpretação da presença dos outros. Mesmo
quando já conhecemos as pessoas há tanto tempo que nem notamos quando elas
estão na sala, continua a haver uma interpretação. Mas são os exemplos das primeiras
impressões que mais mostram o que se pretende dizer -- quando vejo alguém pela
primeira vez fico com uma impressão dessa pessoa, que não é uma impressão
principalmente anatómica ( e mesmo quando há uma forte impressão anatómica ela
fica marcada por uma disposição que a caracteriza e envolve).
O que nós temos das pessoas
nunca são as suas determinações afectivas, mas o estado em que nos deixam, como se houvesse uma relação de
causa efeito, em que essa pessoa nos deixa tingidos com o fluxo específico da
sua maneira de ser. A nossa relação com os outros só se cinge a uma
determinações objectivas por características abstractas (alto, homem, etc).
Nós não conseguimos ter uma
intuição do que o outro é só pelo olhar, pois a tal relação entre causa e
efeito não se verifica sempre. Muitas vezes não se produz um estado eficaz e
atuante da presença do outro em nós (ἐνέργεια), não se acende sempre uma luz
dos outros em nós. O acontecimento do outro é sempre disposicional, mesmo
quando a disposição está apagado (pode-se, de facto, pensar uma relação
disposicional com a não afectação dos outros em nós, como é o caso das pessoas
que passam na rua). Cada outro é uma melodia, que pode estar a tocar aos
berros, pode ter várias cadências, pode ser música de fundo, como um contra
baixo, ou mais ao estilo de um saxofone (a cadência do outro é sempre musical e
por isso permite ter uma relação com o tempo). Por mais que eu queira isolar a
disposição que o outro é o que os outros provocam em nós é uma disposição
térmica (aquecem, arrefecem), que varia, e que aparece e desaparece por vagas.
Isto não é difícil de perceber
que é assim -- difícil é isolar um momento metodológico ao modo científico.
Porque ao fazê-lo ela fica despida de fenómeno atmosférico, e resta a pura
anatomia, sem qualquer contacto com o suposto interior. Aquilo de que eu ando à
procura desaparece, o fluxo atmosférico desaparece. Isso impossibilita o que se
visa porque nós interpretamos o outro sempre já como portador da vida. Por isso,
quando eu o desvitalizo ele surge-me como mera abstração, e é dificílimo não o
desvitalizar quando o tento ver por categorias científicas e objectivas.
Há uma enorme dificuldade em
perceber que o outro é portador da vida, porque o outro pode não ter importância
para nós, porque ele nos surge como se nós estivéssemos no trânsito. Nós temos
contacto e somos com pessoas que correspondem a uma ínfima parte das pessoas
que vemos. Quando uma pessoa é para nós ela deixa de ser uma anatomia e passa a
ser uma personagem da nossa vida, passa a ser parte da nossa vida (de tal modo
que as pessoas com quem nos relacionámos nunca desaparecem da nossa vida). A
população que passeia às X horas são figurantes, são o pano de fundo, e assim
as pessoas surgem neutras e impessoais e isso implica já a interpretação de um
deficit quanto à sua presença na nossa vida. Eles são vistos como um papel na
nossa própria vida, um papel secundário, e isso não corresponde ao uma
determinação objectiva, mas à existência de uma vida que é uma peça, mas é uma
peça que está fora do holofote que ilumina a minha vida. O que está em causa e
o que Heidegger tem de destruir é o facto de tendermos a pensar que quando
alguém passa a ser das nossas relações passa a ser um conteúdo subjectivo (no
sentido de meramente subjectivo, não objectivo cientificamente-- por exemplo,
as mães a falar dos filhos)
A priori o que existe é a
natureza da relação que abre de nós para outros, e não uma relação objectiva ou
subjectiva. O importante é a natureza da relação entre sujeito e objecto.
Nesta perspectiva que contrapõe um sujeito e um objecto duas pessoas nunca se
encontram -- nunca nos podemos encontrar com outro numa relação de sujeito
objecto. Nesse caso não há janelas que permitam ver o que o outro é. O
solipsismo é não anulável porque é o modo irremissível como nós vemos o outro
numa relação sujeito objecto . Mesmo que não saibamos o papel de A e B nas nossas
vidas, sabemos que a personagem que nunca apareceu e de repente aparece e
depois passou, mas essa pessoa que foi uma aparição nunca se torna um conteúdo
objectivo nas nossas vidas. Nós aparecemos aos outros como personagens nas suas
vidas, tal como eles a nós. E uma percepção nunca poderia dar conta deste
acontecimento. O outro surge-nos sempre disposicionalmente, quer ele esteja à
nossa frente ou não. Quando não há percepção o outro pode surgir-nos e nesse
caso surge-nos com uma "impressão digital" disposicional ( é disso
que sentimos falta quando temos saudades). A vitalização do outro pelo papel
que tem na nossa vida e a desvitaliação do outro pelo papel que tem na nossa
vida. O ponto é que o carácter objectivo do outro só surge com quando não
conseguimos ter acesso a disposições. A compreensão do outro como personagem na
peça é que a caracteriza como aquela vida, passa a haver uma adesão ao outro
pela adesão a essa vida do outro, é isso que nos mobiliza na espectativa de
encontro -- é por isso que as pessoas se encontram e desencontram. É por isto
que só os humanos se encontram e desencontram, porque se acedem por disposições.
O outro acontece-nos como um sentimento
que invade e inunda a nossa vida. É assim que também nós somos para os outros.
O que se passa na análise do
ser com o outro é que percebemos que só na anulação da disposição pode haver
uma análise objectiva, só nesse caso ele pode ser um objecto; mas esse objecto
é morto, é desvitalizado. A subjectivização é a condição de possibilidade de o
outro ser uma pessoa, caso contrário é um objecto. Ver o outro por uma
percepção pura não é ver um outro, é ver uma quantidade de características
puras e objectivas. Assim, compreende-se que olhar o mundo exclusivamente
através de um modo de ver categorial torna o mundo inabitável e completamente
esvaziado de sujeito (como diz Wittgenstein no Tractatus e nos Tagebücher
1914-16).
Se estivermos numa perspectiva
de observação nós já estamos numa disponibilidade de observadores, e por isso
temos um olhar condicionado que reduz o outro e faz cair o seu carácter de
portador da existência ao mero carácter de percepção. Se as categorias com que
operamos pressupõem uma ontologia natural, que tem uma relação de sujeito com
objecto, como é que eu posso dar conta do outro como atmosfera? O ponto é
procurar expor-se à situação em que a disposição acontece de um modo
lancinante, de tal forma que o que acontece nessa relação não pode bipolarizar
a relação entre sujeito e objecto. Não passa por analisar o que é uma
disposição e a relação de causa efeito, mas perceber que a disposição em que
nos encontramos é a natureza da relação entre o que estamos a ver e nós
próprios. Não ao modo da reflexão, mas ao modo do "encontrarmo-nos a
nós" em tal situação e em tal atmosfera. Por exemplo o papel que tal
sítio desempenha nas nossas vidas (ex. a faculdade).Os sítios têm, ou não,
importância consoante a susceptibilidade de animação deles nas nossas vidas --
eu organizo cidades pela forma como elas animam a minha vida.
Nunca sucede um conteúdo ser
ausente e depois passa a ser presente como conteúdo objectivo que também se
encontra numa relação comigo. O sentido do ser dessas coisas é sempre
disposicional. Não é uma passagem de um conteúdo neutro e objectivo que
depois passou a subjectivo, mas sim uma destruição dessa relação implícita
entre sujeito e objecto, relação essa que não permitia dar conta do modo como
eu me encontro a mim em relação com coisas e por isso com atmosferas de
sentido. As análises das feromonas e do efeito que elas têm entre pessoas
só pode ser percebida e interpretadas porque nós já sabemos o estado e as
disposições em que nos deixam. Esses mecanismos são simples, no fundo
correspondem apenas à transformação da relação entre causa e efeito em relações
de estímulo e reação. Mas não deixa de ser uma interpretação que apenas
acontece já como interpretação no seio de uma ontologia natural que é a
linguagem. Nenhuma análise de geografia poderá dar conta do que é a praia da
minha infância, ou sequer do que é uma praia para mim. Porque essa forma de
determinação deixou de fora a análise maciça da forma como nós vivemos os
acontecimentos. O modo como nós nos encontramos é deixado de parte por esta
análise. Nós encontramo-nos a nós próprios não como se estivéssemos a ler um livro
de psicologia, mas estamos já a ler esses tratados como quem lê o Zodíaco aos sábados no jornal -- nós
reconhecemo-nos ali porque já sabemos como somos, porque temos uma abertura a
priori a nós próprios. Não é a transição de um campo categorial do sujeito
objecto para um campo categorial onde tudo é subjectivo, mas perceber que só há
objectividade se o outro deixar de ser o outro e passar a ser neutro e eu
passar a ser neutro. Não é uma coloração subjectiva que destrói o carácter
objectivo, mas perceber que este
projecto científico não corresponde à possibilidade de compreensão das coisas,
mas que, pelo contrário, esse modo de ver destrói completamente a existência e
por isso a compreensão das coisas. Não é uma tentativa de assassinar o
objectivo das ciências, e dizer que devia haver uma biologia existêncial, mas
mostrar que isso depende já de uma disposição.
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