16ª aula de Filosofia Contemporânea
Aula anterior: análise do
tédio de segunda ordem.
Também a segunda forma de
tédio apresenta as duas características fundamentais do tédio de primeiro
ordem: o tempo que custa a passar (Hinhaltend),
vivido como contra tempo, e o facto da vivência do tédio esvaziar sentido(Leerlassend). Há uma reacção na forma
como se procura passar o tempo (Zeitvertreig),
que na segunda forma de tédio é anónima. Não há, na segunda forma de tédio, uma
identificação explícita do ente que provoca o tédio. Mas, pela enunciação na
voz passiva, pode-se entender que é o próprio que causa o tédio, é ele que se
maça.
O que caracteriza o vazio é o
facto de não haver trânsito na sequência de um momento atrás do outro. Na
primeira forma de tédio isto é explícito. Mas no tédio de segunda ordem isto só
é notado depois. Na festa há indícios que contrariam a descrição do tédio e a
dificuldade do tempo passar. Há um programa que nos faz ir nas horas, a agenda
faz-nos passar nas diversas fazes e faz a travessia dos momentos do serão. Mas,
então, como é que nós identificamos a estrutura de Hinhaltend, Leerlassend e
Zeitvertreig? Como é que se pode
falar de vazio se a vivência dos conteúdos que nos são oferecidos são passados
na sequência do tempo, se nós vamos nas horas? Como é que então podemos falar
de procurar fazer passar o tempo?
Em causa está uma tentativa
de compreensão das circunstâncias pelas quais passámos na nossa vida, e não
apenas das estações quando se perde os comboios e das festa. O problema é: como
perceber o que estamos a sentir disposicionalmente, se estamos a ir no
conteúdos determinados pelo programa, pela agenda do quotidiano? Como
identificar essas situações peculiares na nossa vida? Como perceber estas
situações na nossa vida, se o tédio só nos bate na cara depois de a situação
ter passado (no tédio de segunda ordem). Não houve nenhuma violência do tempo
que custa a passar, mas houve uma suspensão do próprio para estar na festa. Não
se sente tédio nem maçada, mas vamos nas horas, mas a agenda expropria-nos de
nós. Estamos a ser invadidas por uma determinação do sentido que é dada pelo
programa das festas, de tal forma que a decisão do sentido da nossa vida no
serão é tomada por uma instância que não somos nós. Nós temos tempo para ir à festa
e damo-nos tempo para ir à festa, mas isso correspondeu a uma abdicação que
eu faço do meu tempo para ir à festa. A pergunta fundamental é: o que é
que determina a expropriação de si no tempo na festa, o que é que determina a
paralisação no modo como vivemos o tempo? O que fazemos é o gesto
fundamental do tempo da nossa vida, exprime-nos. O tempo da festa é vivido não
como o tempo que não é nosso, porque está a ser consumido, mas é um tempo em
que nós não fazemos o que somos. Uma
pessoa na festa é uma pessoa que está na festa, suspendeu o seu papel, aquilo
que faz, e aparece a sua fachada. Isso mostra-se pelo facto de as conversas
serem conversas de circunstância e superfície. As pessoas numa festa estão
justamente esvaziadas e neutralizadas de si. Em causa está a apresentação de
níveis horizontais que determinam as conversas, porque o programa é um programa
que visa divertirmo-nos de nós, fugirmos de nós. O que nos leva nas horas não é
aquilo que nos acontece. Isso é absolutamente extrínseco e não tem nada a ver
comigo.
O ponto tem a ver com a
determinação linguística, com o sich langweiten bei. Este si foi o que ficou em casa e maça-se
aí onde se encontra. O mundo do trabalho tem uma agenda controlada por nós,
mesmo que não consigamos cumprir prazos e da dependência dos outros, mas é
controlado por nós na medida em que estamos compreendidos no seu sentido -- no
trabalho há possibilidade de expressão de qualquer coisa com um si, há um
emprego de si, uma dignidade de si, o poder expressar-se a si, ter um papel a
desempenhar num quadro e num contexto complexo. O trabalho tem que ver com o
emprego de si, está em tensão e polarização com o desempenho de si. O que
sucede na festa é justamente o intervalo do trabalho. A festa são os momentos
em que nós não estamos connosco a trabalhar. A pergunta é: o que é que eu sou
no intervalo do trabalho? Quando eu estou a trabalhar à uma lógica de oferta,
eu sou (nem que seja para os outros) aquilo que ofereço. Nas festas eu valho o
que valho fora do trabalho. Na festa vemos o "espírito" de uma pessoa
(como diziam os franceses). O ponto fundamental é: o que é que acontece
comigo quando me estou a expressar? e o que é que sucede quando esse encosto no
trabalho se perde e passo a ser a pessoa que é tratado pelo primeiro nome pela
mãe para levar o lixo lá a baixo? O que é que acontece quando estamos a
trabalhar e quando nos exoneramos do exercício das nossas funções? Teoricamente
a festa seria uma oportunidade para ser eu sem a canalização para o que faço,
mas ela é, pelo contrário, um momento de desocupação de mim, ela esvazia-me. E
por esse motivo eu não posso encontrar os outros nesse que seria o local ideal
para os encontrar -- o problema é que nenhum dos "eus" vai à festa (a
não ser quem vai trabalhar para a festa, que não está na festa, está a
trabalhar).
O ponto é que eu estou a
cumprir uma agenda que não é minha -- eu não sou agente de sentido, e por isso
sou eu que me maço, que me aborreço. O que existe é
uma disponibilidade para estar ali, em que vamos nas horas porque daqui a nada
a festa desfaz-se e daqui a umas horas eu "vou à minha vida". Qual a
diferença entre estar numa situação em que temos problemas e programas nossos e numa situação
em que não faço nada por mim? O ponto é que nós não calculamos que vamos despedirmo-nos
de nós, mas eu dou tempo de mim e deixo de ser eu para ser um animal de festas.
Quando é que eu deixo de ser eu e me desocupo de mim para estar desocupado de
mim (que não é só nas festas, mas também quando não consigo estar a estudar e
me ponho a imaginar coisas)? Como descrever a saída do emprego para o
desemprego? E o que é que acontece no regresso a vinculação connosco em que
deixamos de estar na festa? O que é que acontece na desvinculação da festa e no
regresso a nós próprios?
A passagem de um ao outro não
é instantânea, nós vamos entrando em casa, vamos despindo a festa. O que é que
sucede nos intervalos do próprio, na vivência do tempo em que estamos
desocupados de nós? Quando estamos a trabalhar ou fazer uma coisa que se gosta
(ex, desporto) pode levar também a um estado de transe em que parece que não
estamos lá, pode admitir uma extroversão, que não implica uma desconcentração,
mas pelo contrário implica uma concentração máxima que me permite ser
instrumento do sentido que tem a minha vida.
Mas podemos também falar de
um trabalho que detestamos. Em causa estão os vários níveis de vinculação a si.
Uma pessoas que odeia o trabalho que faz tem uma dificuldade incrível em entrar
naquilo que está a fazer. Quando estamos a executarmo-nos estamos já a pegar na
vida -- há uma fluidez e o trabalho segue o seu curso, vamos realizando tarefas
de acordo com um sentido temporal que organiza a nossa existência e nos permite
ir nas horas. Quando chegamos ao fim do dia e deixamos o trabalho, o que acontece? O que acontece é o
"ficámo-nos por aqui" e vamos agora fazer outra coisa. Terminou a
situação em nos estávamos a executar, ouve uma interferência na execução de
trabalho e eu deixo de ser o estudante e passei a ser o Tomaz, passei a estar
entregue ao que sou fora do meu emprego no trabalho.
Mas nós estamos sempre a
entrar e a sair das coisas. O foco da análise do tédio de segunda ordem é que n ós temos de continuamente nos abandonar sob pena de nos fartarmos
de nós. O sentido fundamental é o do "keep busy", que significa
fazer alguma coisa, gostando ou não -- o que fazemos tem por sentido
preenchermo-nos. A descrição de Dostoievski dos presos, que ficam até ao fim da
vida a partir pedra, transformando o que é um meio num fim, tornando-se uma
tortura de ocupação. Esta é a base da pergunta para o sentido de ocupação em
Heidegger. Nós só temos liberdade para a pergunta quando surge esta
pergunta pela repetição de procedimentos
sem nunca encontrar resultado. O trabalho corresponde a uma ocupação que nos
entrega a nós próprios, mas pode ser apenas uma ocupação que me afasta de um
outro eu ainda mais profundo que é uma maçada e com o qual não consigo conviver
e do qual tenho de me distrair --
pode haver uma entrega ao próprio tal que não consigo fazer nada no mundo,
porque se estou comigo não me consigo afastar de mim nem manter-me comigo, e
isso é insuportável. Assim, ocupo-me com o trabalho, para não ter que lidar
comigo... Nesse caso acontece o mesmo que acontece nas festas mas a um nível
mais fundo. A pergunta é: e se o trabalho é, na verdade, a festa ou o passeio
dos tristes de domingo à tarde --
trabalho como ocupação dos tempos livres. Aquilo que
aparentemente é o exercício máximo de mim pode efectivamente ser a exoneração
máxima de mim. E nesse caso o exoneramento da profissão não é
necessariamente uma exoneração de mim. Eu não sei quem é o próprio
relativamente ao qual eu estou a fugir com o trabalho, e nesse sentido o
trabalho pode ser uma prótese, que servem de máscaras. E é assim que temos algo
dos outros -- o que nós temos dos outros são apresentações. O trabalho é um
preenchimento peculiar, que pode ser fundamental na vida, mas que não esgota
aquilo que sou. O próprio tem que ver não com o trabalho, mas com a forma
como trabalhar: a maneira como trabalho, com a maneira como me relaciono comigo
na totalidade da minha vida (24h x 7dias). O próprio seria alguém que não ocuparia
tempo, mas que faria tempo, ou seja, corresponde a uma forma peculiar de se
relacionar com o tempo, ou até de manipular o tempo. Em causa estão níveis de
autenticidade. Ser tão o próprio que mesmo mudando tudo o que faço seria
exactamente o mesmo. (isto foi pensado pelos estoicos)
A pergunta pelo sentido do
ser (der
Frage nach dem Sinn von Sein)tem justamente a
ver com isto -- com o sentido de mim: será que estou, faça eu o que quer que fizer,
no campo de prisioneiros de Dostoievki? Há um próprio de mim em causa que não é
o nível extremo na da pergunta pela autenticidade , no tédio de segunda ordem.
Há uma pergunta ainda mais radical que a
análise de segunda ordem deixa escapar.
( A execução de mim e a
execução de mim em relação aos outros no comando "ama o próximo como a ti
próprio" abre para uma dimensão completamente diferente deste estudo. A
análise que está aqui a ser desenvolvida prende-se com uma possibilidade de
execução de mim, com a ocupação de um cargo (dignitas), mas que pode não ser a única. Ele está a analisar forma
elementares do reconhecimento de si. O nível que Heidegger está a descrever é
aquele em que me reconheço naquilo que eu faço. Mas quando o tédio e a angústia
me batem eles estão-se nas tintas para isso.)
Nas vivências disposicionais
eu consigo identificar um "não sei quê" que é agente do tédio. No
serão é a festa. O "não sei quê" é a perda de tempo -- na festa há
uma relação com a perda de tempo, que só descobrimos depois de ter ido a essa
festa. O que está em casa é a relação com o tempo e com o tempo que falta,
com o emprego que faço do meu tempo. O que está em causa é o excerto do
tempo que me impede de voltar ao trabalho. Mas a tem também de se perguntar: o
que é a vida de alguém reduzida ao trabalho?
Pág 174.
O tempo pressiona. O tempo é
o aflitivo, passa de forma hesitante. É justamente isto que passa a ser tido
como esvaziamento. É o tempo que não passa e que é denso, tão denso como uma
parede de aço. No tédio o tempo mostra-se como ele é -- uma chatice. Nesse caso
a vida é uma chatice, uma maçada. E
nós percebemos isso no tédio, e fugimos disso pelo trabalho, porque não
conseguimos viver a vida.
3ª forma de tédio.
Parágrafo 29 e seguintes das
lições.(pág. 294)
"é domingo numa grande cidade,
é um tédio" -- "Es
ist Sontag in einen großen Statt, es ist einem Langweilig"
O domingo à tarde em que tudo é um tédio. A circunstância é aquela em que não
conseguimos encontrar nada para fazer passar o tempo. Todas as tarefas que encontramos
têm o estatuto das ocupações de quem perdeu o comboio na primeira forma de
tédio. O flanneur passeia pela cidade
porque não vai fazer nada. Este tédio é expulsão absolutamente radical de mim
do tempo. É isto que está em causa no tédio de 3ª ordem. E não temos nenhuma
forma de combate a esta exposição ao tédio -- nunca chegamos a ser aquilo que
éramos para ter sido.
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