15ª aula Filosofia Contemporânea
Sessão passada: acabou na
primeira forma do tédio.
Antes de introduzir à segunda
forma do tédio, importa fazer uma revisão, com especial foque no carácter
operacional das disposições. Isolar o operador disposicional como operador de
análise.
Procurámos ver a que é que
corresponde a possibilidade de nos relacionarmos com uma disposição que nos
tenha acontecido de tal forma que a sua lembrança é condição de possibilidade
para a sua reactivação, mas não é condição suficiente.
Procurámos ver as formulações
em português para o tédio. É a partir do
foco das opiniões (das ἔνδοξα), para focar a experiência concreta da vivência
do tédio. Na análise vimos que a estratégia linguística de Heidegger levava a estudo
das vozes de enunciação do fenómeno do tédio.
Os fenómenos de 1ªordem são
formulados na voz passiva. A formulação permite isolar o estado em que ficámos.
O resultado de uma hermenêutica da facticidade -- a facticidade corresponde
aquele horizonte em que nós nos encontramos ao testemunhar as coisas que nos
acontecem "o estado em que ficámos". A enunciação pressupõe um
fenómeno de exposição a um agente que nos deixa naquele estado. A enunciação
testemunha apenas o "fiquei neste estado". O agente da passiva não é
o causador desse efeito, é apenas o que induz. O tédio se constitui por invasão
de perspectiva e impossibilidade de controlo. Deixa-me sem manobra de
acção.
O ponto é que de manhã à
noite estamos sempre num estado X. Estamos sempre a encontrarmo-nos num tal
estado. Independentemente dos agentes, encontramo-nos sempre como se pudéssemos
dizer o estado em que nos encontramos, estado em que algo nos deixou. O agente
constitutivo das posições é susceptível de uma identificação clara e nítida. A
situação de perder o comboio deixou-me num tal estado que eu reconheço como
tédio. Neste caso o agente é "perder o comboio". Percebo a situação
de facto, estou aborrecido. Mas não há uma relação de causa e efeito entre a
perda do comboio e tédio. A perda do comboio dá azo a que eu fique em tédio,
mas poderia ser que eu não ficasse numa situação de tédio (eu podia ir
passear). Uma causa não é causa de nada se umas vezes provoca o efeito e outras
não, se causa efeitos diferentes em pessoas diferentes. Não há uma relação de
causa e efeito entre a perda do comboio e o tédio.
Outro ponto que interessa
focar é o facto de haver uma modificação dos conteúdos perceptivos por causa do
tédio. O que eu vejo é modificado pelo tédio, pela disposição em que eu me
encontro. As situações de tédio são vividas de um modo específico que altera a
minha relação com os conteúdos apresentados pela percepção.
O custar do tempo a passar é
um eufemismo para o curto-circuito do tempo, ou seja, para o tempo que nunca
mais é. Eu estou interrompido entre o tempo que parou e o tempo em que eu posso
voltar a ser.
O segundo ponto da análise
realizada é que no tédio eu estou cheio de tempo, mas de um tempo que nunca
mais é. Não se trata de deixar tempo livre e pronto para correr. Pelo contrário, o tempo do tédio deixa-nos
vazios, ou seja, cheios desse tempo que nunca mais é. Na experiência desse
tempo nós procuramos encontrar algo que faça passar o tempo -- encontramos
passatempos. Mas depois esses passatempos ficam aborrecidos e tornam-se também
eles entediantes. Mas isto podia ser algo disposicional que só se identificasse
com a minha cabeça -- "tem que ver comigo" -- e não com as pessoas e
o ambiente; mas não é assim: o tédio alastra-se e abarca a estação de caminhos
de ferro no seu todo. Depois tentamos matar o tempo com as coisas que não
fazemos habitualmente, mas mesmo assim não conseguimos habitar esse sítio.
Estamos num sítio expulsos da possibilidade de lá estar. Não há nada naquela
estação que não me aborreça mortalmente. O tempo em que as estações preenchem o
seu sentido é o da sua serventia (apanhar comboio e sair de comboios), não
foram feitas estar lá. Por isso eu não posso fazer nada ali. Eu estou nesse
ambiente completamente vazio de sentido, mas também não posso sair porque não
consigo fazer nada. Estou à espera de entrar pelo mundo a dentro e por enquanto
não consigo -- não consigo entrar no mundo (pensar na posição do Tractatus e no
sujeito fora do mundo). Não se trata da duração de 4h que me obriga a
experimentar tédio, mas sim a ser o tempo do tédio. Não são 4h, são 4h em que
eu não consigo fazer nada -- não consigo entrar por lado nenhuma adentro: nem
ler, nem estar no café nem na ópera. Esses sítio estão blindados. Eu não
consigo ir lá. Não consigo habitá-los. Passo a querer expulsar o tempo que mata.
O tempo do tédio é o tempo da morte. É a experiência da impossibilidade
total. Não consigo nada, estou fora da minha vida, estou impossibilitado
de viver. Mas continuo a olhar para o relógio. Só que quando olho para o
relógio não é para ver as horas(eu acabei de ver as horas), mas sim para ver
quanto tempo falta para eu conseguir voltar a ser. Eu estou numa realidade
absolutamente eficaz que me congela até eu poder voltar a ser. O que eu vejo é
o tempo que falta para matar até ser tempo. A experiência do tédio é a
experiência do vazio, no qual eu não posso ser.
Pág 140 (volume 29/30)
"Nós lemos o horário,
estudamos as distâncias, (...)olhamos para as horas e percebemos que passou
apenas um quarto de hora(...) e não ajuda nada, voltamos a olhar para a paisagem
e olhamos para o relógio e só passaram cinco minutos (...)" Forma de
passar o tempo que se constitui de uma forma absolutamente espontânea.
Constituem-se formas espontâneas de passar o tempo -- nós pensamos situações que
nos obviam a possibilidade de estar num tempo que não habitamos. Essas
possibilidades são possibilidades de nós que nos surgem de forma espontânea. O
passatempo, o que expulsa o tempo que nunca mais é, é na verdade um empurrar
para fora o tédio através de um incentivo a que o tempo volte a passar. Passar
o tempo corresponde a uma qualificação temporal -- o tempo do tédio obriga a
uma reacção que quer obrigar o tempo a passar. Visa actuar contra um tempo que
nunca mais passa. É tudo um incentivo a que o tempo passe.
A característica que resulta
é que a disposição do tédio permite identificar a situação em que nós nos
encontramos como exposta ao tédio (por enquanto fala-se do tédio de 1ª ordem),
de tal forma que se não estivéssemos expostos ao ataque do tédio, não teríamos
capacidade de perceber a situação do tédio. A situação em que eu me encontro é
que me permite identificar essa característica da minha vida -- o ser
susceptível de tédio. Esta característica mostra o meu modo de ser -- o ser
exposto e vulnerável ao tédio. A vida é susceptível de nunca mais ser, de ficar embargada. A
vida é susceptível de ser uma maçada. A vida pode nunca mais ser. A vida pode
nunca mais passar. A vida pode ser um tédio. Neste sentido, como se viu
à pouco, a vida pode passar ao lado da vida, pode nunca chegar a ser. E
esta forma nunca mais vais abandonar as outras formas de tédio descritas por
Heidegger.
Pág 147
"Não há horas que
parecem um eternidade?" Nesse caso qual o sentido de olhar para as horas?
Temos uma invasão de um forma de acontecimento que é ontológica. Essa é a
condição sine qua non da análise
filosófica. Sem isso não pode haver filosofia, mas também pode não haver
filosofia numa vida toda exposta ao tédio. Porque não há causa e efeito. É isto
que está em causa na analítica existencial do Dasein. As características do tempo que custa a passar são
características metafísicas. Mesmo a pessoa mais simples do mundo diria "nunca mais passa", e o
que acontece é uma experiência maciça da vida que nos notifica como ela é: uma
maçada. Que dizer -- há uma suspeita de que a vida pode ser uma maçada, porque
é a própria vida que me avisa disso. O estratagema que eu encontro é o
manter-me ocupado. Esta é a minha forma de expulsar o impossibilitante, o que
me impede de ser. O tédio constitui uma asfixia que torna tudo impossível. Mas
esse momento traz a noticia da eternidade...como é que num momento de tédio eu
tenho notícia da eternidade? Como é que num único momento eu tenho uma notícia
da eternidade? Porque, de facto, eu tenho num instante a notícia da eternidade,
de todo o tempo do mundo que se constitui como vazio, sem mim, embargado,
relativamente ao qual eu tenho de fazer alguma coisa. A qualidade da momento de
tempo "nunca mais" não vem do mundo: ela notifica-me a partir do
próprio aí. É a vida que nos dá a ver
um dos seus rostos -- a possibilidade de ela ser vazia de nós.
A outra possibilidade te que
ver com a situação do tédio se dar quando nós nem de perto nem de nós darmos
por ela. O que acontece quando tudo o que é divertido e animador surge como
entediante. É isto que Heidegger analisa na segunda forma de tédio.
Parágrafo 24 e seguintes.
primeiro importa Caraterizar.
A formação linguística é
formulada pela voz reflexiva o "aborrecer-se"
"entendiar-se", etc... Não tem o agente da passiva introduzido por von, mas tem o complemento introduzido
por bei etwas. É por o que me
acontece a mim a partir de mim que eu transporto o tempo para o sítio onde eu
me encontro.
Há caraterísticas que se
mantêm: há retenção do tempo e o tédio continua a deixar-me vazio.
Pág. 165.
Somos convidado para ir a um
serão. Não precisamos de ir, mas estivemos o dia inteiro a trabalhar, e por
isso temos tempo para ir e vamos. Há a habitual comida, a conversa de
circunstância. As coisas não têm apenas bom gosto, mas muito bom gosto. Ouve-se
música, conversas, contam-se anedotas, etc.. É tudo agradável e divertido. E de
repente já é tempo de ir embora. E quando já estamos lá fora dizemos "foi
mesmo muito simpático", foi mesmo "terrivelmente estimulante",
nós não encontramos nada que tivesse sido maçador no serão: nem as pessoas, nem
o local, nem a comida, nada. Ao chegar a casa olhamos de relance para o
trabalho que deixámos na secretário e pensamos no dia seguinte. E então surge:
" foi então efectivamente uma grande chatice", foi uma noite
maçadora, foi um "maçar-se a si nestas circunstâncias"
O próprio descritor aponta
para uma linguagem que não abre para o que vem depois ("foi
maçador").Como é que na vivência dessas horas ao serão têm em si o tédio a
constituir-se?? (O problema tem a mesma base que o de Santo Agostinho nas
confissões, quando diz que não há maior infelicidade do que ser infeliz e não
saber. Como é que se pode ser infeliz sem saber? Do mesmo modo, como é que se
pode estar entediado sem saber?) Qual é a relação entre olhar para o trabalho
que ficou suspenso e a invasão do tédio? Como é que nessa altura assoma o
"foi uma perda de tempo"? Porque quando acontece eu perceber que
tenho de ir embora já essa ordem estava dada horas antes sem eu ter percebido.
Não houve notificação da presença do tédio antes de eu chegar a casa... Há uma
película de divertimento que não me deixa ver. Mas aquilo é uma terapia
ocupacional. A agenda é a agenda do convite e do serão, não é a minha agenda. O
que se passa é que eu entro efectivamente em todas as conversas, vou falar com
toda a gente, ouço música, entramos pelas coisas adentro e depois vamos embora,
porque são conversas de circunstância. O que está aqui a passar-se é eu estar a
ser levado nas horas em que o problema é o da situação do serão. O problema é
que não há relação de causa efeito entre eu sentir o tédio e o tédio. Foi um
serão que não houve tédio algum, mas o sentido do ser do serão revela-se depois
de ter acontecido. O ponto não é eu passar a ver como uma maçada, é que eu vejo
objectivamente que aquilo foi mesmo uma maçada. Não consigo identificar a
disposição daquela situação. Eu não identifico uma causa, mas há uma
interpretação do que é que eu sou na relação comigo e na abdicação de mim para
ir ao serão. E por isso está em causa o facto de no serão eu ser "eu no
serão" e não eu a fazer aquilo que eu faço". Eu não estava a ser
porque não estava disponível para "ser eu no serão". E justamente o
que me está a reter é o próprio de mim que não me permite entrar -- sou eu que
me estou a aborrecer. Claro que me posso divertir, mas só quando estou
totalmente disponível para ser naquele momento a divertir-me. Caso contrário
sou eu o agente e objecto do tédio. A
natureza desta paragem temporal e deste esvaziamento deixou de ter o ponto de
irradiação do exterior (o comboio) mas passa a vir de mim. Fui eu que não
consegui expor-me e disponibilizar-me para estar lá.
Heidegger vai tentar fazer é
encontrar indício que não foram vividos explicitamente, mas que correspondem a
fenómenos que aconteceram e apenas o olhar analítico vai encontrar. Vai tentar
encontrar as situações em que o tédio foi reprimido.
pág 167
Ex. As vezes que tivemos de
esconder um bocejo. O bocejo como sintoma de tédio. Quais são os indícios do
que fizemos para ocupar o tempo. Outro Ex. Trautear os dedos; brincar com o
fumo do cigarro, etc.. São sinais que indicam uma presença de espírito que
acaba por mostrar sinais somáticos como manifestações de tédio. Há sinais de
tempo no seguinte sentido: tempo que nunca mais passa e esvaziamento de tempo.
Não é que estivéssemos à espera que aquilo acabasse, pelo contrário...Eu
percebo que o serão corresponde a uma impermeabilização da vida -- ficou
suspenso algo de mim. Houve um eu que queria ter ficado em causa, mas foi com
outro eu que queria ir à festa e por isso embargou o divertimento na festa. Houve
também ali uma tentativa de ocupar o tempo.
Não há apenas uma primeira
forma e uma segunda forma de tédio, mas várias. mas a caraterística
fundamental do tédio de segunda ordem mostra de forma ainda mais evidente a
possibilidade de eu estar fora do meu tempo, no tédio, embargado de mim, sem
saber. Nesse caso, o agente do tédio sou eu (o eu que queria ficar em
casa e por isso impediu o outro eu de se divertir). Não demos tempo para
aproveitar o serão, e por isso houve um embarco do próprio que eu sou. Quem
cria a censura e neutraliza a possibilidade de viver o serão como tempo meu.
Há uma tentativa de encontrar sintomas que estão camuflados por fenómenos que
são mais gritantes que os que constituem a nossa própria vida. São esses
fenómenos que se quer estudar na analítica existencial do Dasein. Podem não ser formas declaradas, que eu percebo depois
de terem acontecido, mas por isso mesmo
permitem a pergunta: qual o estatuto
de todas as ocupações da minha vida? Ou seja, qual é o sentido da
ocupação do tempo? Está-se a permitir o alastramento, mesmo que
inconsciente, do tédio à vida toda...Qual o estatuto do que fazemos, se na
verdade esse nível ocupação pode ser identificado como forma de ocupação do
tempo. Será que isso não está em tensão com um agente que está em suspenso e se
esse agente não nos esvazia e por isso a vida não tem o mesmo estatuto de
ocupação do tempo. Está posta a
possibilidade da pergunta a respeito do sentido da nossa vida. A
pergunta depende de uma óptica de alargamento baseada pelas experiências
concretas do tédio de primeira e segunda ordem. A pergunta é: Será que o
quotidiano não corresponde à expressão de uma tentativa de passar o temo, quando
ele é visto essencialmente como vazio e esvaziador, quando ele não custa nada a
passar, mas efectivamente custa horrores a passar.
Na análise do tédio de
segunda ordem, a característica que permite tudo isto é o anonimato e aparente
ausência. Não há nenhuma possibilidade de olhar de frente para ele. Ele
bate-nos na cara de vez em quando, mas não demora muito. O que está em causa é
uma análise sistemática de todos os acontecimentos da nossa vida vistos pela
interrogação de poderem ter em si apenas o carácter superficial que esconde o
horizonte temporal de um tempo que nunca mais acaba, ou seja, de uma impossibilidade.
O tédio de segunda ordem permite ver que a vida pode ser uma maçada (ou também
incrivelmente divertida). A pergunta do sentido das ocupações é: será que
aquilo que fazemos preenche o que está vazio e resolve o problema, ou é apenas
terapia ocupacional? tem a ver com a ponte entre o tédio absoluto e
inabitável de primeira ordem e o tédio de segunda ordem. Não tem a ver com
patamares. Há uma transitividade da forma e uma metamorfose dos conteúdos
que depende absolutamente do modo como estamos a viver a situação.
Sem comentários:
Enviar um comentário