sábado, 14 de abril de 2012

10ª aula 11.4.2012 (Tomaz Fidalgo)


10ª aula 11.4.2012

World.
Heidegger, SZ, §§12-15.


In-der-welt-sein [ser (em)-o-mundo]

Analítica existencial temporal do dasein -- existenziale temporale analytik des da sein(s)

Análise do mundo e da estrutura fundamental do ser no mundo. O objecto da determinação analítica é o dasein.

§9 - aquele ente que está em análise somos nós de cada vez, o ser desse ente é sempre, de cada vez, o meu. No ser deste ente, este ente relaciona-se sempre com o seu ser.
Aquilo de que trata a Analítica existencial temporal do dasein (= filosofia) não é nem o eu nem o entendimento, nem o espírito, nem a lucidez, mas é aquilo que eu digo ser eu próprio, aquilo que eu de cada vez digo ser eu próprio. A análise deste eu que eu digo ser de cada vez é configurado ontologicamente como ser (Sein).

Isto pode ser compreendido pelo advérbio je. Este significa continuamente, mas significa também sempre -- a ideia continua da expressão "de cada vez". Pode acontecer que nós de cada vez, continuamente, não sejamos nós próprios, pode até dar-se o caso de as circunstâncias em que nós dizemos ser nós próprio serem estranhas à forma como a maior parte das vezes nos encontramos a ser.
O que se pretende é a análise complexa de como nos surpreendemos a ser. O modo como nos relacionamos com nós próprios não é um modo teórico com uma configuração, mas corresponde às circunstâncias em que na maioria dos casos damos connosco a ser.
O objecto de referência da pergunta "como vamos" não tem a ver com a perspectiva teórica que permite enxergar como vou. A perspectiva teórica tem sempre vistas curtas que não conseguem a abarcar o que acontece quando dou comigo.

A circunstância em que damos por nós na vida é justamente a de dar por nós na vida, a surpresa de já estar a ser. Exemplo de acordar -- quando acordamos damos já com o mundo a ser, "ligam-se as luzes todas ao mesmo tempo". e nós não acompanhamos esse momento de despertar: quando percebemos já estamos despertos, nunca apanhamos o momento de despertar, já estamos em contacto com tudo quando acordamos, quando percebemos que acordamos, no fundo, já estamos acordados. O modo como nós damos por nós...
O fundamental não é o objecto, não é o conteúdo, mas a forma de relação a esse conteúdo. Eu sou um modo de estar em contacto comigo. Nós descobrimo-nos a nós não no exterior perceptivo, mas encontramo-nos numa maneira de ser, damos connosco numa maneira de ser, e não num conteúdo. O clima peculiar não é exterior, mas uma forma de compreender tudo que é completamente interior. Aquilo de que estamos a falar quando nos referimos à vida é aquilo de que somos portadores -- como se trouxéssemos o mundo às costas, e é nesse horizonte que tudo se passa. O horizonte é o princípio onde tudo acontece ao mesmo tempo -- o aí (da). Eu estou cá -- ich bin da -- quer dizer que para onde vou levo um horizonte estruturante que indexa tudo o que acontece. Tem um valor adverbial.  Se eu estiver cá só estou cá por estar aqui. A forma como os pronomes pessoais estão distribuídos pelos advérbios. Tem a ver com a ideia de "estou aqui" (a prestar atenção, por exemplo) ou quando a conversa pesa e começamos a pensar noutras coisas dizer "não estava cá". O cá não é o sítio onde estamos incarnados: eu posso fazer uma viagem até ao Algarve e não estar lá ao volante, estou a guiar mas a pensar no dia anterior.

Esse cá é o horizonte onde eu estou. Esse cá é uma geografia completa de sentido -- quando estou a ler estou lá.

 Claro que eu posso depois "acordar" porque toca o telefone, claro que há um contacto perceptivo e de resolução prática da vida que se pode impor, como travar quando não estou a pensar na estrada mas estou ao volante.

São os advérbios que permitem explicitar o ser e o estar. As formas complexas dos verbos explicitam isso que não tem complementos. As formas de perceber que não estamos aí é pela compreensão de que não estamos lá. Quando estou a ir de férias estou já lá onde vou chegar. Há uma diferença entre o sítio onde estamos e o sítio com que estamos a sonhar, mas nós estamos mesmo lá -- eu fico mesmo com água na boca quando penso em comida.

Tem a ver com  a forma peculiar de abertura que abre para aquilo que eu estou a ser. O que é que estabelece o contacto? Qual é a origem e proveniência? Qual é o ser (Sein) que configura este ente? É o abrir-se e o fechar-se. É o abrir e o fechar da porta é que configuram a porta -- são os infinitivos --, e não o ser rectângulo e estar numa parede. A forma que configura o ente que eu sou é o do ir nas horas. A analítica do dasein visa estudar as situações em que nos encontramos sem darmos por isso. A pergunta "porque é que isto me acontece" só é possível porque estou cá. O mundo é a pista de aterragem onde se dá esse contacto em que eu venho a mim.

Há uma ideia complexa de nós nos relacionarmos com o poder ser -- a forma como eu me encontro está relacionada com o horizonte de sentido que nos dá um contexto de interpretação: "estou a chegar lá" ou "ainda falta muito". A nossa forma de compreensão das coisas tem por isso a ver com expectativas. A forma de estarmos nas coisas tem a ver com o ser ou não ser para nós, com o chegarmos a horas ou chegarmos tarde às coisas (Ex. comecei tarde de mais neste desporto; comecei cedo de mais a levar qualquer coisa a sério).  Isso corresponde a uma avaliação possibilidade pelo a ser da vida que me permite identificar (fantasiosamente ou não) o que eu espero vir a ser e não consigo ou consigo. O modo em que nós nos temos permite relacionarmo-nos com as hipóteses de ser.

O problema é que há apenas uma fora de vida única para cada um -- há apenas uma possibilidade de cada um ser. Uma pessoa pode ter tudo na vida e ainda assim não ser, e o contrário também é válido. O que está em causa é a possibilidade de vencer na existência. O problema é que não há regras para esse jogo. E depois há frustração e êxito. O ponto é: como é que eu sou o próprio? Como é que posso perceber o meu projecto vital? Tem a ver com a noção complexa de termos um livro de encargos. Nós temos um livro de encargos relativamente a nós próprios. Este ente somos nós próprios; somos nós próprios na medida em que estamos a coincidir com aquilo que seremos na execução desses encargos. Nós somos mobilizados para nós, ou para deixar de ser. Mesmo que não encaremos sempre a possibilidade radical de sermos o que somos de raiz, há uma relação desde sempre com aquilo que nós somos desde que acordámos pela primeira vez. A referência de mim a mim é uma referência aquilo que se estica pelo tempo. Eu não sou o ponto que se relaciona estigmaticamente de mim a mim, mas a obtenção da transparência com a forma da finitude temporal. Mesmo que vivêssemos para sempre estaríamos sempre na relação com o tempo -- o projecto fundamental é de extensão. E nessa extensão eu estou sempre em tensão para mim, na expectativa de ser o próprio. As expectativas regulam este modo de nos relacionarmos connosco. Nós estamos obrigados a ser alguém, a ser o próprio com o qual estamos em tensão e ainda não somos, ou já fomos, ou somos. Estamos em constante avaliação dos cumprimento ou não cumprimento das possibilidade e expectativas.

 Este ente não está bem aqui na perspectiva do "agora" (ensanduichado entre ainda não e já não), não é uma perspectiva estanque (não ser no tédio ou na angústia). Não é um cogito hic et nunc esse, pois esse é uma mera abstracção, que é vivida como um enclave entre o que já não é e o daqui a nada, que não é ainda. A forma como instanciamos "agoras" e "aquis" resulta de uma dilatação até a eternidade de todo o tempo do mundo e todo o espaço do mundo (nunc stans -- um agora que está de pé para sempre). O que nós temos é uma ideia de totalidade, o tempo em que nós vivemos é todo o tempo do mundo, porque quando eu vivo uma parte do dia eu já estou em tensão com tudo o que vem no tempo futuro, bem como uma relação com tudo o que está  no tempo passado.

Este no ser deste ente, este ente do ser relaciona-se sempre com o ente que eu sou, tem que ver com esta presença horizontal destes horizontes em que me encontro. O eu é qualquer coisas que se dá para além do tempo de vida. Nós estamos continuamente numa tensão relativamente ao que está para ser. Temos uma relação com o limite. Há uma tensão com o futuro a haver. A relação que temos com nós próprios é uma relação com o "a haver". E ao mesmo tempo é uma relação de gerundivo -- "temos de ser". O ponto fundamental é que a relação com o meu ser não é uma relação com todos os momentos que eu já fui mas na qual todos os momentos que eu já fui são aqueles que eu terei até ao momento da minha morte: aquilo que eu fui na infância ultrapassa-me e está a minha frente. O meu eu é determinado pela tensão que eu hei de ser. A minha vida é determinada pela minha relação com o futuro. O a "a ser"/"a haver" corresponde ao sentido do ser do ente que eu sou. tenho de perceber a natureza do "a haver" do que estou a embarcar -- "o que é que vai acontecer daqui a vinte anos se eu continuar nesta rota?" -- uma relação que eu tenho comigo determinada pelo curso da rota na qual eu embarquei.
O ponto tem que ver com a diferença entre o que eu sou e o que eu posso ser, que constitui uma pressão relativamente ao que eu sou -- são estas possibilidade que criam tensão com aquilo que eu sou.

§9 -- " Und Dasein ist meines wiederum je in dieser oder jener Weise zu sein ..."
o meu ser é a sua possibilidade mais extrema -- eu só sou se for a possibilidade mais radical que a vida me dá a mim.
" Dasein ist je seine Möglichkeit und es »hat« sie nicht nur noch eigenschaftlich als ein Vorhandenes "
O que eu sou é definido pela possibilidade. É justamente isso que me define a mim. É isso que define a minha relação entre aquilo que eu sou e a minha vida a ser. A dificuldade é que a vida não está feita à nossa medida, e somos nós que temos de fazer a vida à nossa medida para podermos ser. O que está em causa é o clima peculiar em que nós podemos ser -- a nossa maneira de viver a existência corresponde a forma de nós podermos ser e para podermos ser temos de ir por aí e criar o mundo onde podemos ser isso. De tal forma que alguém compreender alguma coisa é ser essa coisa, se ele não foi então não compreendeu. Ex. do Fausto de Goethe.
Qual é a forma peculiar de nós sermos com outros? qual é a forma peculiar de nós sermos connosco?
A dificuldade tem a ver não com uma perspectiva teórica, mas pelo facto de compreendermos uma possibilidade ao sermos essa possibilidade.
É neste sentido que Heidegger fala da autenticidade. Ser eu corresponde a preencher o tempo de acordo com uma hierarquia que nos faz ser nós. Como é que configuro o próprio de mim? por essa hierarquia? Em que circunstâncias é que eu sou eu? E em quais é que eu estou alienado? Ex. dos divertimentos: estamos embalados e estamos a ir nas horas mas não estamos numa agenda do próprio. Esse é um caso de inautenticidade.
Então em que circunstâncias é que eu estou em contacto com essa possibilidade radical do próprio? Ou seja, em que circunstância é que eu estou em contacto comigo?

 A radicalização da filosofia moderna na transcendentalidade de Kant ou na Fenomenologia de Husserl, a radicalização de Descartes, do eu a ver-me a mim no mundo não corresponde ao modo como nós nos achamos, não é a perspectiva em que nós nos encontramos. Isso vê-se nas situações pragmáticas, nas quais as percepções são feitas à base de interpretações dadas por motivações e horizontes de sentido. O modo de estar na vida não é o da reflexão. Só é quando algo se constitui como objecto de cuidado. Uma forma radical de nos relacionamos connosco é aquela pela qual nos relacionamos com as coisas que nos apoquentam.
O outro ponto tem que ver com o facto da compreensão daquilo com a qual nos preocupamos não tem nada a ver com conteúdos perceptivos -- o sujeito transcendental não se apoquenta --, nós não percebemos como é que nos encontramos através de uma compreensão perceptiva.  Nós somos à escala mundial, ao ponto de o tempo ser pensado à escala da toda a temporalidade. O modelo com que Heidegger trabalha é o modelo da identificação de janelas de oportunidades (pode criar ou ver oportunidades) que ou são aproveitadas ou não são aproveitados. A forma como vamos ao mundo é dada por uma ou duas ocasiões -- a possibilidade de pressão que cria a oportunidade pode ser única. É uma análise de kairologia (identificação de oportunidades). Só há relação com alguém ou com Deus ou com o que for se houver uma abertura que se não fosse aberta não teria sido isso. A vida é dada por todas as ocasiões aproveitadas e também por todas as ocasiões que não foram aproveitadas. 

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